Por, Maria Sucar
“O trabalho do cinema ou de qualquer outra forma de arte não é de traduzir mensagens escondidas da alma inconsciente em arte, mas de experimentar com os efeitos que os aparatos técnicos contemporâneos têm em nervos, mentes ou almas” – Maya Deren
Apesar de sua forte construção de pontes entre o cinema e a dança e seu espírito vanguardista como mulher no cinema surrealista, um dos maiores legados que Maya Deren nos deixou enquanto facilitadora de narrativas foi a permissão para a experimentação.
Seu primeiro filme, Meshes Of The Afternoon (1943) passou seus primeiros anos de vida sem uma trilha sonora, sendo focado em uma construção pictórica e na experimentação de recursos técnicos como a câmera e o filme 16mm. O que em um primeiro momento pode soar como negligência se justifica quando reconhecemos seu trabalho como extremamente processual, esses possuem início, meio, mas não um fim. Ela mesma em muitos momentos descreveu suas obras como “nunca concluídas, mas apenas abandonadas.”
E são justamente as noções de abandono que aqui nos interessam: o movimento de permitir-se esquecer é o que nos possibilita lembrar. Em Sobre Flores, Facas e Sombras (2022), Spuri aceita o convite para a experimentação iniciado pela cineasta nos anos 40 e reativa seu primeiro filme (que agora encontra-se em domínio público) ao entregar uma roupagem sonora nova, fazendo uma ponte entre períodos da arte e suas manifestações.
Contando com beats de Davzera, Eloy Polêmico, Miranda, Olx e Eixo, a narrativa já existente é complementada, mas também é reconstruída, criando uma concomitância entre a visualidade de 1943 com a sonoridade de 2022, o que evidencia o sucesso da não conclusão que Deren tanto buscou construir em suas obras e a permissividade para a construção de novos sentidos à medida que novas tecnologias e tendências culturais surgem.
O som por si só é uma parte muito pouco percebida na fruição audiovisual, sendo incorporada como elemento visual e dependendo quase inteiramente da construção pictorial. Nossa relação tão favorecida pela visualidade pode ser denunciada pela primeira versão do filme, como contrapartida, Spuri preenche essa lacuna, retoma aquilo que nasce como provocação e nos prova de uma vez por todas a importância do som para comunicar o que se deseja.
O ouvido, diferente dos olhos, não possui pálpebras. O som preenche o espaço seja ele físico ou narrativo e é trabalhando com essa ideia que conseguimos criar novos sentidos a partir de sons diferentes. Se apropriar dessa vantagem para trazer novos sons á velhas imagens e, dessa forma, permitir novos sentidos ao que já existe é de uma sacada espetacular, que apresenta respeito não só a arte que já tivemos, mas também a arte que estamos construindo.