“Meu Coração é Meu Veleiro e meu Guia” e o oceano interior de Dro

por Gabriel Santos

Gosto de dizer que existem duas maneiras de fazer arte: olhando para fora, e olhando para dentro. Essas formas, é claro, se complementam e se misturam, mas quase sempre uma predomina sobre a outra. Nesta brincadeira de palavras o álbum recém saído do rapper Dro, “Meu coração é meu Veleiro e meu Guia”, seria um belo exemplar do segundo tipo: um relato introspectivo e pessoal.

Dro é de São Paulo, tem 26 anos e faz música desde os 12. O seu primeiro EP solo no rap, “Deserto de Danakil”, de 2018, é um outro trabalho bem interessante e merece ser ouvido. É um pouco mais sombrio que este, mas já imprime algumas características que já estariam presentes aqui, que é um flow mais cantado, e o uso de instrumentos orgânicos.

Em “Meu Coração é meu Veleiro e meu Guia”, há não só uma continuidade dessas características, mas um aprofundamento. Na primeira música, “Como Se Fosse um Filme”, teclados, sintetizadores, baterias, flautas, violões, refrões cantados se impõem em um ritmo sempre limpo e jamais agressivo, e que dará o tom de todo o álbum.

A segunda faixa, “Se eu Soubesse Cantar”, se tornou a minha favorita e já começa com um refrão cantado, e bem marcante. E é a que mais se aproxima de uma sonoridade padrão do trap, pelo uso dos 808, e demonstra muito bem a sensibilidade particular do Dro, sempre embalada por uma visão reta, não-romântica dos fatos, mas permeada por uma suave ironia:

“se eu soubesse cantar fazia uma daquelas para você que faz malandro chorar”.

A terceira música se trata de uma lovesong em duas partes: “Perguntei pra Deus / Qualquer Esquina Desse Universo”. Perguntei pra Deus é embalada por um belo som de piano e marcada por uma batida de meia-lua, e é a que merece destaque – gostaria até que tivesse sido mais longa. Na virada para “Qualquer Esquina”, o ritmo se acelera, os sintetizadores tomam de conta.

A faixa que dá nome ao álbum começa começa com um sampler da Whitney Houston que dá um ar retrô e que se mistura muito bem com um refrão mais puxado para o pop. A mensagem é de otimismo, a música soa como um mantra e parece amarrar tudo o que vem sendo mostrado no álbum: o coração como um guia, cujo caminho para o qual ele nos leva nem sempre é o mais macio. Seguir o coração às vezes dá merda, nem sempre estamos confiantes ao fazê-lo, e muitas vezes agimos errado, mesmo sendo visceralmente honestos – e essa é a beleza.

“Tudo no seu tempo e ele vai chegar”

A próxima faixa, Opala Negra, tem o ritmo fortemente ancorado em uma frase de flauta, e a lírica é preenchida com referências ao filme Jóias Brutas, do Adam Sandler. O verso de Victor Xamã é marcante, como sempre, e que conversa muito bem com o espírito da obra; MAND’NAH, por sua vez, adiciona uma textura muito interessante com a sua voz e compartilha o refrão com o manauara.

Uma Meia de Cada Par / Uma Rosa de Cada Cor” é a mais melancólica do álbum, puxada para o lo-fi, a música parece falar de solidão com versos como “ninguém vai me ver partir / se eu não bater a porta”, mas mesmo ela nos deixa com uma mensagem otimista “eu não vou mais desandar”.

O álbum se fecha com “Feito Jimi”, um rap mais clássico, de baterias marcadas e parece uma viagem no tempo com um toque de nostalgia e cheia de referências pessoais, sob o olhar de alguém que olha para trás e parece avaliar o saldo da vida até então.

Meu Coração é Meu Veleiro e meu Guia é um relato introspectivo da trajetória de Dro, mas que pela profundidade e honestidade, é capaz de conversar com as vivências e os sentimentos de cada um de nós, como só uma boa arte daquele tipo que olha para dentro é capaz de fazer.

Além de emocionalmente engajante, o álbum mostra o apuro artístico do autor, que demonstrou estar sempre consciente das texturas que procurou imprimir nos ritmos e melogias, e que realizou praticamente todos os beats a partir de sons instrumentais orgânicos e tocados por ele. Um feito notável em um álbum de rap.

Eu tive a oportunidade de trocar uma ideia com o próprio Dro, que me falou sobre seu processo criativo, sua história com a música, e as referências contidas no álbum. Confira a entrevista logo abaixo!

Como foi o processo de idealização do seu trabalho? Ouvindo o disco, senti uma certa coesão interna, então me surgiu essa pergunta: o conceito “Meu Coração é meu Veleiro e meu Guia” você criou antes das músicas, ou foi o inverso, e surgiu de algo que você já tinha?

Na verdade, o nome veio quando eu estava escrevendo o meu verso da música título. Ia ser um som com um mano do RJ, Dc Calmob, mas por motivos pessoais ele não pôde continuar com o trabalho, então ele sugeriu que eu finalizasse a música sozinho, que estava muito boa.

Pois bem, ao escrever o trecho “tudo no seu tempo ele vai chegar / tudo no seu tempo e no balanço que deus pede / meu coração é meu veleiro e meu guia”. Quando esse verso saiu, foi meio sem querer, como uma linha qualquer. Mas depois que finalizei a letra, parei um pouco nessa frase, vi como ela soava e como era forte e pensei “Porra, isso dá o tema de um trampo!”.

E o melhor, percebi como tudo que eu vinha escrevendo ultimamente casava com a ideia dessa frase. Ouvi de novo, e pensei: “é isso!”. E estava escolhido o nome do trampo.

Você tem uma relação com a música que vai além do mic e do rap, certo? Fala um pouco sobre ela.

Desde que me conheço por gente, eu chapo em música em um nível muito intenso. Meus pais não tocam instrumento, mas em casa desde que eu era pequeno, rolava muita música. Muita música e pouca TV. Meu pai colocava Bob Marley, Titãs, Raimundos, Cidade Negra, Paralamas do Sucesso, Djavan, Tim Maia, e essa foi minha formação.

Mas, mesmo com toda essa imersão no mundo da música, só fui começar a tocar mesmo em 2005, quando tinha 12 anos. Mas desde então nunca parei, já me aventurei em banda de rock, banda de reggae, já toquei muita guitarra e muito baixo.

A produção no rap veio só lá pra 2010, 2011. Então, 5 anos antes de começar a fazer hip hop, eu já chapava em instrumento e tocava muito. Meu brinquedo era a música.

Ouvia muito Red Hot, System of a Down, Rage Against the Machine quando moleque. Já curtia rap, como Racionais, MvBill Ndee Naldinho, mas ainda não era o meu estilo principal.

Meu contato real com o rap começou com o álbum do Racionais, O Raio X do Brasil. Olha a história: Meu pai morou no Japão nos anos 90, foi lá pra trampar como peão mesmo, junto com vários outros brasileiros que estavam emigrando naquela época. Eu tinha uma ligação bem forte com ele, e a gente curtia muito ouvir Raimundos juntos, então um certo dia pedi de presente de aniversário para a minha mãe um CD do Raimundos. Acontece que ela não conhecia raimundos, e acabou voltando com um CD do Racionais por engano (hahaha), e era justamente o Raio X do Brasil. E acabou que eu chapei mais no Racionais do que eu chapava no Raimundos, e esse CD, mais especificamente a música Fim de Semana no Parque, foi o meu grande clique no rap.

Só depois de mais velho percebi que no fim todo esse desenrolar na música contribuiu para formar o artista que eu sou hoje. Justamente alguém que procura trazer a essência do rap mas pega emprestado esse leque de estilos que serviu para a minha formação.

Você disse que toca desde os 12 anos, como foi sua relação com os instrumentais na criação desse trampo?

Todos os instrumentais foram produzidos por mim. Nesse CD eu usei pouquíssimo sample.

Sempre tive o desejo de fazer sons mais cantados. Apesar de eu dominar instrumento de corda e já ter cantado em banda, sempre tive uma certa vontade de ser o vocalista. Eu tinha um grupo chamado zerando o saldo, lançamos um album de 2017 chamado Destinos Distintos, e esse cd era totalmente baseado na cultura do sample, colagens, tipos de frases, sample de jazz, soul, alterações de pitch estilo Kanye West. Bem rapão mesmo.

Mas quando comecei a carreira solo, quis fazer composições que dessem para eu realmente cantar. O sampler é algo meio incontrolável, difícil de domar, então decidi que iria fazer as linhas de melodia do meu jeito para poder deixar minha voz da melhor forma. O resultado é que esse ep é, digamos 97% orgânico e tocado por mim.

Ao compor o álbum, eu quis atingir uma sonoridade equivalente à de uma banda. Pra isso usei muito piano, muito Teclado Rhodes, (um timbre que sou apaixonado), muito baixo orgânico (você realmente pode tocar as músicas deste CD no baixo).

A verdade é que eu fiz esse álbum pensando como se houvesse uma banda atrás de mim, mesmo. Se você ouvir os sons, vai sentir elementos familiares de uma banda. Por isso muita gente se agrada se sente confortável de ouvir esse EP, são timbres que estamos acostumados a ouvir a vida toda.

Mas ainda assim, existem alguns samplers no disco, é possível contar nos dedos. Para quem curte ir atrás das referências, eu posso listar eles:

  • No início de “Como se Fosse um Filme” é um sampler de bateria que eu sampleei do David Axelrod, e coloquei uma distorção para dar um efeito meio glitch
  • Em “Meu Veleiro e Meu Guia” tem um sample vocal da Whitney Houston, Jesus Loves Me, daquele filme famoso, O Guarda Costas.
  • Nesse mesmo som, tem um sampler de percussão que simula muito bem o som dos instrumentos reais. Isso é difícil de fazer com um timbre sintético, pelo fato da bateria ser um instrumento muito humano, muito orgânico.
  • Outro ponto interessante é que nas músicas em que há guitarra, que são as únicas partes que não fui eu quem fiz mas do meu amigo Vitor Souza, q conheço desde 2006, e que além de tocar pra c****** fez a mixagem e a masterização.

Bacana, e como é (ou como foi nesse trampo) seu processo criativo nessa relação composição vs. instrumental? Vc costuma surgir com a letra antes e construir o instrumental em cima, o inverso, ou não tem muito critério?

Bem, eu sempre, sempre, sempre, faço o instrumental antes da letra. Eu gosto de construir um instrumental primeiro, pq a partir dele que eu vou construir o ritmo e a melodia da minha letra.

Na hora de criar, eu considero a minha voz como um elemento do beat, tanto na questão rítmica, que são as sílabas, como na questão melódica, que é o próprio flow.

Então eu ponho todos os instrumentos antes para depois deitar minha voz. E na maioria das vezes começo pela bateria. Eu acredito que não adianta a música ter um sampler irado e uma melodia ótima no instrumental se o ritmo não prestar. Vejo o ritmo como o alicerce, a estrutura, as paredes da música. O sample, a melodia e os instrumentos são como os móveis, a pintura, a iluminação.

Se eu pudesse dar uma ordem para o meu processo criativo, seria o seguinte: percussão -> instrumento -> composição de lírica -> levada -> melodia.

“Meu coração é Meu Veleiro e Meu Guia” foi lançado no dia 17 de setembro de 2020, e está disponível nas principais plataformas de música.

Você pode ouvi-lo agora gratuitamente clicando neste link.

Fotografia: Tainá Esteves

Arte de capa: Beatriz Ruston

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