por Gustavo Silva
Todo o processo histórico do Brasil direcionou a sociedade para um contexto no qual nunca houve muita margem para se ter um debate sério sobre cultura e arte (ao menos no cenário de produções nacionais), ou até sobre a importância transformadora da arte em diversas atmosferas do sujeito e da sociedade.
A cultura e a arte no Brasil nunca estiveram na lista de prioridade de qualquer governo, e sempre dependeram do sacrifício daquelas pessoas que encaram arte como pulsão de vida, e dedicam sua energia e tempo para algo muito maior do que meros trabalhos audiovisuais com o fim de entreter.
Esse cenário excludente trouxe ao fazer artístico, e ao meio cultural, caráter de ferramenta capaz de perpetuar vozes de pessoas constantemente silenciadas, em prol da sua sobrevivência, auto-afirmação, busca por respeito, espaço e reconhecimento, em um mercado onde estão enraizadas influências e pensamentos puramente pautados em ideais de segregação, elitismo, preconceito e desinformação.
Para falar de uma forma mais concreta sobre essa realidade, a Straditerra entrevistou a cineasta, fotógrafa, videomaker, editora, artista visual, desenhista e escritora Isa Hansen. Formada em Cinema e Audiovisual, Isa tem um portfólio extenso de grandes trabalhos, inclusive junto à cultura do Hip Hop, expressando com características muito próprias sua arte como plataforma de representatividade, sobrevivência e revolução, e falou um pouco com a gente sobre suas vivências e visões acerca da arte em nosso contexto atual.
Straditerra: Para começar a falar do seu trabalho, eu queria entender a sua visão sobre a importância de um videoclipe, de um trabalho visual bem executado, para as produções de rap e para o trabalho desenvolvido pelo artista. Porque tanto com mc’s que estão começando, que têm acesso a poucos recursos audiovisuais, quanto com artistas já bem estabelecidos, a gente consegue ver muitas vezes uma padronização muito simplória nas produções visuais dos trabalhos. Como você vê a importância desse cuidado com os trabalhos visuais no rap?
A importância de um trampo bem executado é total, agora, independente dessa importância, a chave aqui é: acesso. O acesso é uma ponte tanto como recursos financeiros quanto como informação e conhecimento, é tudo uma questão da formação de um intelecto, não só de investimento monetário.
Eu diria que criatividade e identidade são os principais pontos em qualquer arte, porque são coisas que formam intrinsecamente a sua vida e aí você as elabora conforme as vivências. Essas duas coisas te oferecem um espectro de possibilidades, são potências, e cada um progride nesse caminho dentro da sua subjetividade. Eu consigo julgar se algo me apetece no momento, mas não se algo é bom. O simples muitas vezes funciona e é bem executado, inclusive às vezes menos é mais, mas o simples não é o simplista, e aí entramos em outra questão.
Então independente do quão importante seja um trampo bem executado, na prática não é tão fácil. Não posso dizer “você tem q fazer isso ou aquilo”, quando sei como é na prática ser um artista pobre. O cuidado com a qualidade técnica do seu trabalho penso que seja o mínimo que qualquer artista tem que ter, na medida do possível, mas precisamos entender o que é essa qualidade circunstancial também. E aqui não falo sobre resolução e nem sobre ter o melhor equipamento, falo sobre qualidade criativa, o desenvolvimento da sua identidade, linguagem, conceito e sentimento. Precisamos parar de associar qualidade a necessariamente resolução, técnica e tamanho da produção. Qualidade não quer dizer 4k, drone, estúdio e atores famosos.
Quando falamos de artistas bem estabelecidos, qualquer qualidade pode ser mais fácil de acessar por questões financeiras, mas antes de mais nada precisamos entender de onde vem essa pessoa, quais as referências de vida dela, independente de onde ela chegou, como isso se formou. Dizer que pra ter um bom trabalho é só ter dinheiro é resumir arte à produto e resumir todo o nosso trabalho a essa qualidade técnica e não é bem assim, infelizmente. Também depende do tipo de construção cultural, do meio que ele tá inserido, não adianta só recurso financeiro, é a famosa “pobreza de espírito”, rs.
Quando falamos sobre esse assunto, somos obrigados a ligar tudo diretamente com o histórico de colonização do nosso país e a situação da educação e cultura e com o fato de que grande parte do rap vem da periferia. Não dá pra falar de acesso sem cair nos desdobramentos das opressões estruturais. Esse conhecimento técnico e repertório audiovisual é bem restrito, é um mercado elitista, machista e racista.
Quando relacionamos isso ao rap, precisamos ter o cuidado de entender esse contexto, o porquê desses mc’s não estarem tendo esse cuidado “ideal” com seus trabalhos. Não posso dizer que uma pessoa que não conheço não tem um trabalho bem executado ou que ela não tem cuidado com seu trabalho, porque às vezes ela tá fazendo o melhor q ela pode dentro da sua realidade.
Se eu acho que os trabalhos visuais do rap tem um potencial muito grande e que poderiam ser muito mais elaborados, se acho que falta criatividade, sentimento nas expressões e entendimento de como aplicar identidade e linguagem? Sim. Mas também sei o porquê isso acontece.
O videoclipe é muito importante pra dar consistência a uma carreira e a imagem do artista, vivemos numa cultura onde a imagem e internet são determinantes pra um artista, lógico que é importante. Eu gostaria de ver esses mc’s bem estabelecidos dando espaço pra muitos artistas “pequenos” das artes visuais que são enormes em identidade, discurso e linguagem. Que são hoje “pequenos”, como um dia esses mc’s já foram.
Vejo que a maioria dos mc’s se alia a produtoras onde a equipe é totalmente elitizada, branca e cis masculina e entendo que os melhores equipamentos, o melhor estudo e a autonomia técnica tá com essas pessoas, mas se não tem uma direção de qualidade, essas pessoas vão aplicar nos trampos suas ideias que são, consequentemente, elitistas, racistas e machistas, construídas assistindo hollywood e visitando a Disney, rs. E eu já cansei de ouvir amigos dizendo “Porra, fiz um trampo com o fulano, munido de drone e 4k e o cara não conseguiu captar a essência do bagulho, o sentimento”.
Rola uma pressa acomodada por parte dos mc’s e digo isso com o maior respeito e compreensão, mas acho que quando a gente se propõe a ser aRtivista, precisamos pensar nisso como um todo, não só na letra, mas também na equipe, nas relações, em tudo. É preciso entender o objetivo do seu trabalho visual pra não cair no ponto onde o visual é apenas um plano de fundo pra sua música. Se você entender o audiovisual como uma ilustração, uma materialização da sua música e da sua identidade, uma extensão do seu corpo-arte, um diferente corpo de uma mesma expressão, aí você entende a importância disso carregar uma identidade. Se você fizer um clipe genérico, pra mim você está dizendo que vê sua música como genérica. Pop é uma coisa, genérico é outra. Absolutamente nada contra coisas fáceis de se digerir, assimilar, uma linguagem acessível e objetiva, não é sobre complicar a fita. Se você preza pelo seu discurso, identidade, essência e se você quer pôr na rua um trampo de coração, único, é preciso olhar com profundidade pra tudo isso.
Com a internet, redes e os smartphones, o audiovisual se tornou mais acessível, o que é ótimo, porém são ondas que vêm e nos resta surfar, mas precisamos entender onde estamos reféns disso e do nosso público. Essa busca por visualização e essa pressa em atingir muitas pessoas de uma vez é perigosa. Se você atinge muitas pessoas muito rápido, pode ser porque sua arte está muito mastigada, o que não é ruim desde que você não esteja se tornando genérico. É preciso observar e escolher onde deixamos nossa essência de lado pra entrar num molde comercial porque precisamos vender e sobreviver, estamos metendo o louco de viver de arte. Se estivéssemos falando de arte por arte, eu não estaria rodeando tanto pra responder, mas se trata de hip hop e ele é acima de tudo responsabilidade e compromisso com a transformação da sociedade.
A importância, mais uma vez, é indiscutível, mas desde que você entenda que por bem executado eu não quero dizer caro nem complicado e sim criativo em linguagem, verdadeiro em identidade e minucioso.
Muitos trampos, como você mesmo disse, muito caros e de pessoas já muito bem estabelecidas são completamente genéricos, previsíveis, simplistas e desrespeitosos com os artistas envolvidos. Ainda estamos nos entendendo com redes, plataformas e streamings, ainda mais com isso mudando todo dia. Ainda estamos entendendo onde o videoclipe entra nisso. Antes tínhamos os canais que passavam clipes na TV, mas não é mais isso. A finalidade do videoclipe precisa ser analisada.
Duma perspectiva de direção criativa, e não de engajamento e marketing, não é essencial lançar clipe em todos os seus sons. Existem diversas maneiras de se construir uma identidade visual foda sem precisar investir uma vida em uma puta produção visual toda vez, buscar isso é uma cilada. Ainda estamos entendendo esse mercado da internet, por mais que já estejamos usando. Daqui a um tempo YouTube e Spotify já serão obsoletos. Não julgo quem faz trampos expressos e genéricos, acho que vai do seu sonho de carreira mesmo, do legado.
O que posso te dizer é que o cuidado com a identidade visual é um pilar da consistência de uma carreira artística e dentro disso é necessário entender o que é qualidade pra você e como você quer sustentar essa identidade. Videoclipe é apenas um galho desse tronco, e como o papo aqui não é sobre como hypar em três passos, te digo que é preciso olhar pro real sustento, a raíz.
Straditerra: Na sua arte a gente vê uma atuação muito ampla e diversa né, com trabalhos de cineasta, fotógrafa, videomaker, editora e artista visual. Eu queria saber como você equilibra todas essas atuações nos seus trabalhos, e qual importância você acredita que essa sua atuação tão ampla, teve na construção do seu próprio repertório que reflete nas suas artes?
Penso em dois motivos pra isso desenrolar, um deles é a realidade, que é um fato determinante não só pra minha experiência pessoal, aí posso te afirmar que qualquer mulher e qualquer pobre desenrola 10x mais habilidades que qualquer homem cis e qualquer playboy, pelo simples fato de não termos tanto suporte e oportunidades, somos obrigades a fazer mais funções do que gostaríamos e aí despertam vários interesses e aptidões.
Agora, a nível pessoal, tem uma questão paralela de que arte não é o que eu faço e sim quem sou, quem sempre fui. A arte é o meu ser, meu corpo, não minha função. Minha ligação com a arte é ancestral, sai como expressão cósmica, linguagem etérea, puro sentimento visceral, ao passo que vivo, a arte se materializa.
Por esses dois motivos entrelaçados, eu desenrolo em vários tipos de expressão. Você não citou, mas eu também escrevo e desenho. É lindo e potente eu conseguir atuar em várias funções, mas não posso romantizar isso, precisamos ter a consciência de que na prática isso se manifesta mais por necessidade do que por vocação e observar quais as consequências disso.
Sinceramente penso que ainda estamos a gerações de entender o que é equilíbrio. Não acho que o equilíbrio seja possível naquele sentido senso comum de estabilidade, segurança morna, sinto que isso é ilusão. Não existe essa estabilidade na vida de um artista independente que precisa desenrolar várias fitas ao mesmo tempo, surgem consequências que não são saudáveis, que trazem um grande desequilíbrio sim e isso não pode ser ignorado.
Eu não equilibro as atuações, o que acontece é que hoje estou aprendendo a organizar, canalizar e fluir com minhas funções. Se em um mesmo trampo sou diretora, diretora de fotografia, videomaker, editora, colorista, é necessária uma dinâmica que sustente isso de maneira saudável.
Essa atuação ampla também pode ser uma vantagem no que diz respeito a consistência de linguagem e eu acredito que sustentar uma linguagem é boa parte de um trampo audiovisual. Quando faço muitas funções tenho uma ampla autonomia, então consigo sustentar e me responsabilizar com mais liberdade criativa, mas mesmo assim é como eu te disse: pesado. Precisamos sentir onde é saudável fazer isso e onde não for saudável mas for necessário, precisamos reduzir os danos.
O artista precisa aprender a priorizar seu bem estar psicológico e a estruturar sua carreira, infelizmente estamos acostumados com as migalhas e com o caos. Estou aprendendo isso há alguns anos e recentemente comecei a fazer terapia, uma das coisas que aprendi com a minha psicóloga foi: “Equilíbrio é movimento”. Equilíbrio é rítmo, não estagnação no meio. É horas estar em cima, horas embaixo, mas não estagnar.
Straditerra: Falando agora um pouco mais sobre a nossa cena do rap nacional. A gente sabe que o rap pode até não ter um gênero definido, mas as mulheres são sistematicamente apagadas dentro do hip hop como um todo, ainda mais no rap. Ano passado um mapeamento da Frente Nacional listou mais de 1000 novos nomes de mulheres fazendo rap, e ainda assim nós vemos uma representatividade mínima feminina no mainstream. Nos seus trabalhos você destaca muito o trampo de mulheres, dentro e fora do rap, como Cris SNJ, DJ Yume, Preta Ary, Killa Bi, Bianca Hoffmann, Monna Brutal, Karen Santana, Ju Dorotéa, Brisa Flow e muitas outras. Queria que você falasse um pouco sobre como você vê a importância de destacar cada vez mais as mulheres dentro dessa cena tão excludente?
A importância é inquestionável, novamente indiscutível. Todas as minas falam sobre isso há muitos anos e já responderam isso mil vezes, mas as pessoas continuam não assimilando ou percebendo apenas por obrigação, sem absorver. Quando absorvem, não praticam. É preciso levar toda essa teoria pro nível prático.
A Frente Nacional das Mulheres no Hip Hop faz um trampo foda, e fora do alcance da Frente existem mais 1000 nomes, e ainda hoje as mídias de rap tem a cara de pau de lançar várias matérias “Lista de não sei quantos nomes no rap que você precisa conhecer” e nem 10% dos nomes ser de mulheres. Não dá pra falar que não tem. Entendo que por questões de acesso as minas estejam com suas produções um pouco mais lentas, mas ter, tem. E tem muitas muitas muitas fodas, com um trampo muito elevado em vários aspectos.
Naquela pergunta sobre videoclipe, eu disse algo sobre a visão projetada em detrimento do que você consome e da sua educação. Se você só cola em rolê de homem cis e só ouve homem e só produz homem, o que vai acontecer consequentemente, é que sua visão, seu repertório e sua rede vão ser só de homens, e novamente consequentemente, machistas. O papo sobre diversidade é um pouco cafona, mas muito necessário.
É importante lembrar que as mulheres são um dos grupos que compõem essa diversidade de minoritários, mas não são sinônimo de diversidade, dentro desse próprio debate sobre gênero, o racismo, por exemplo, sempre acaba em segundo plano. Mesmo q a gente fale com um alinhamento muito grande entre racismo e machismo, acabamos invisibilizando ou não agregando no debate grupos como LGBTQIA+, pessoas com deficiência, indígenas e outros muitos grupos. É preciso aprofundar e discernir os debates.
Eu mesma hoje posso te dizer essas lindas palavras, mas há poucos anos eu não entendia nem metade disso que tô te dizendo. É uma construção constante, infinita, e complexa, todos estamos em evolução. A fita é o que você faz com o que aprende, como aplica na prática. Saber que tem mais de 1000 nomes, citar ou listar isso é um passo, mas onde estão essas mulheres na cena e qual a realidade delas fora da internet? Você tá entrevistando elas? Seus leitores estão consumindo elas? Você ouve, cola nos shows, compra os produtos delas?
Responsabilizar o opressor é essencial. Nós já somos por nós há muito tempo. A importância de destacar é indiscutível, mas destacar por destacar não é o suficiente. Essas mulheres e outras minorias querem e precisam viver da sua arte. Precisamos, mais do que citá-las, fomentá-las, consumi-las e é preciso levar isso como OBRIGAÇÃO.
Straditerra: Além de boicotes diários que as mulheres sofrem dentro do rap, conhecemos histórias de beatmakers que dedicam os piores beats pras minas, produtores que assediam artistas, inúmeros casos de agressores dentro da cena, e muita gente acha que toda essa realidade e esses problemas vão sumir se simplesmente não falarmos sobre. Você acredita que através do seu trabalho, da sua forma de expressar a arte, é possível atuar para uma recuperação do espaço, e do respeito da mulher dentro do hip hop?
Através do meu trampo recuperar um espaço pra mulher? Não sei. Acho que é muito além disso, acredito que o reparo venha principalmente através de outra dinâmica. Ao mesmo tempo que grupos minoritários lutam por reconhecimento, pro corre virar, tentamos simplesmente sobreviver, isso é mais exaustivo do que qualquer corre.
Enquanto as pessoas no topo dos privilégios constroem suas carreiras, colocam em prática seus projetos e se preocupam com firmar grandes parcerias e contratos, outras estão tentando fazer isso mas são assediadas e boicotadas, tentam fazer isso enquanto carregam sozinhas nas costas suas casas e filhos, enquanto despistam seus perseguidores, enquanto abrigam irmãs ameaçadas/agredidas, enquanto se recuperam de suas próprias agressões e enquanto tentam decifrar e firmar sua saúde mental e sua história ancestral. Fica até difícil sintetizar pra você uma realidade tão rica em obstáculos e injustiças.
Não sei se é sobre recuperar um espaço, ressignificar uma estrutura como um todo vai bem além disso, ainda que eu seja parte responsável, pelas questões que me privilegiam, não estou nesse topo. Quando é colocado assim, sinto esse rolê meio simplificado e sinto uma responsabilização jogada pras mulheres de desfazer algo que não foram elas que criaram e não são elas que perpetuam.
O próprio feminismo é sempre ressignificado. Como já disse em outra resposta, o debate vai muito além de gênero, principalmente se tratando de hip hop, de Brasil. Eu posso atuar na recuperação de um espaço que deveria me pertencer, ao passo que também revejo o espaço que ocupo como mulher de pele branca.
Meu trabalho atua pra uma porção de coisas que fortalece essa revolução, principalmente entre nós, mas acredito que quem desrespeita é que tem o poder de então passar a respeitar, foge do meu controle. Eu posso exigir respeito, mas não tenho o poder de fazer respeitarem efetivamente, infelizmente. Não adianta gritar quando o outro lado tá tampando os ouvidos. Estamos falando disso toda hora há muito tempo, o ponto não é falar sobre, porque estamos falando incansavelmente.
Straditerra: Além da cena mainstream, muitas das questões de apagamento feminino dentro do rap têm origem ainda nas batalhas de mc’s, né? Para mim as batalhas funcionam muitas vezes como uma forma de educação básica, de primeiro contato de uma parcela da juventude com todo o movimento do hip hop, e nessa cena muitas artistas que buscam um meio para começar a expressar sua arte encontram um ambiente nocivo e violento. Você fez um trabalho juntamente à Batalha da Aldeia visando essa busca por garantia de espaço e voz para as mc’s de batalha. Queria que você falasse então um pouco sobre como foi a experiência de criação e produção desses trabalhos, com sua própria identidade visual e estética, junto às artistas dessa que é considerada a maior batalha de mc’s do Brasil.
Esse projeto com a BDA nasceu justamente por essa visão que você falou, de ser um primeiro contato com essa parcela muito jovem do público e veio dessa vontade de dar uma atenção pra essa arte educação.
A experiência foi bem interessante, foi um projeto que surgiu primeiramente por mim e pela Deyse Silva. Eu conheço o Bob 13 há muitos anos, somos da mesma região do interior de SP. Nos encontramos em SP em 2017 e acabamos fazendo uns trampos de videoclipe, assim eu conheci a Deyse Silva, companheira dele e acabamos ficando amigas.
Conversando com ela sobre essa questão desse cenário violento e restrito, pensamos em fazer um projeto, já que já tínhamos esse laço estreito com os fundadores da BDA. Criamos o formato juntas e apresentamos pro Bob, a pessoa mais próxima, e ele comentou que eles já vinham pensando sobre a necessidade de fazer alguma movimentação pra impedir esses discursos que produzem e reproduzem violência e preconceito pra esses jovens, inclusive eles tinham acabado de implantar regras nas batalhas e estavam sofrendo com a adaptação do público e dos mc’s em relação a isso. Já estava nítido pra eles que a batalha e os discursos ali criados tinham que se tornar mais conscientes, acolhedores, respeitosos, confortáveis, diversos, politizados e consequentemente mais saudáveis.
Tudo se alinhou rapidamente, eles toparam na hora e assim partimos pro som piloto, o Fatos, onde teve Karen Santana, WinniT, Monna Brutal e Bianca Hoffmann. Foi muito interessante, porém é sempre muito desafiador quando mulheres/lgbts tentam fazer parcerias e projetos com coletivos majoritariamente cis-masculinos. Não posso te dizer que foi só tranquilidade e alegria, porque além dos conflitos usuais que todo trabalho de coletivo tem, ainda tinha a questão de que eu e a Deyse éramos as únicas minas, numa parcela muito menor do que a quantidade de homens que já tinham autoridade ali. Eles sempre nos deixaram a frente e com liberdade, respeitam bastante o meu trabalho, mas os mecanismos tóxicos são tão enraizados que infelizmente nem assim deixam de aparecer. Isso se dá em TODA relação, não só ali, isso é comum (mas não natural).
Foram dois sons lançados, eu e a Deyse tínhamos mais alguns planejados e sendo pré-produzidos, mas é bem difícil falar especificamente sobre a BDA, porque é o maior canal de batalha do Brasil, com mais de 3 milhões de inscritos, isso é novo no rap brasileiro, eles estão inovando em muitas áreas, estão trabalhando seriamente e conseguindo algo grande e apesar das divergências tenho muita admiração pelo corre deles.
Com toda essa expansão, também vêm grandes obstáculos de hackeamento de acesso, de metodologia de mercado e principalmente uma grande responsabilidade social. Se na batalha rola machismo e isso é aplaudido, automaticamente significa que esse público aceita e gosta disso, mesmo que em estado de alienação. E isso significa que esse público vai reproduzir isso.
Implantar um projeto com participações que carregam discursos e corpos muito diferentes do que eles e seu público estão acostumados, logicamente implica em um retorno não automático, rápido e tão só positivo. É cabulosa a experiência de chegar num canal desse tamanho colocando um projeto desse, ainda mais com a minha linguagem visual que foge um pouco do tradicional.
É interessante você pegar pra ler os comentários, sempre tem uns que mostram nitidamente o quanto ainda estamos atrasados. Lembro de um específico que falava sobre os pelos no suvaco da Karen, rs. A mina manda uma letra cheia de complexidade e mensagem, mas o cara trava no suvaco. Mas é justamente sobre isso, é um indicativo de que o público ainda tá nessas ideias e a proposta era justamente detectar e conversar com isso e quem sabe plantar alguma semente de transformação.
Ali a proposta sempre foi mensagem e diversidade, tinham muitos nomes que formariam uma sequência de sons fodas, mas no processo de criação do segundo som, descobrimos juntos que por alguns motivos agora não é o melhor momento pra realizar algo da magnitude que idealizamos. Então encerramos o projeto e encerrei minhas participações com o mesmo respeito que sempre tive por eles, talvez num melhor momento pra todos a gente volte a pensar sobre trabalho.
Enfim, posso te dizer que foi difícil porém muito enriquecedor pra todos como experiência profissional. Como eu disse ali em cima: é preciso trazer pra prática diária e aí cada movimento cis-masculino e/ou branco, cada coletivo que ao menos flerta com o político, cada mc vai entender uma hora como usar seu privilégio e sua influência em favor de pessoas, discursos e movimentos emergentes.
Straditerra: Voltando a falar mais especificamente sobre o seu trabalho. Em 2018 nasceu a produtora/selo independente YONI da qual você faz parte com a Bianca Hoffmann e a Karen Santana, certo? Queria que você falasse um pouco sobre a criação da produtora, a importância do selo para essa necessidade de solidificar a arte das mulheres, e como tem sido a experiência de atuar com a YONI.
A YONI se condensou e se dissipou na mesma bala. Eu conheci a Bianca em uma gravação, ela me apresentou a Karen e me chamaram pra gravar o clipe do feat “Baba Yaga e Vasalisa”. Quando nos encontramos, todas em momentos delicados da vida, vimos um terreno muito fértil e decidimos o conhecer, então num estalo se materializa Yoni. Já era algo pronto pra ser trabalhado, não tinha como não funcionar.
Porém no decorrer das experiências, surgindo a intimidade e o projeto amadurecendo, entendemos que não só as subjetividades das nossas prioridades eram muito diferentes, mas principalmente nossa visão de mundo e nossos ideais e, por isso, encerramos os projetos no final de 2019.
Hoje vejo que nos identificamos principalmente por estarmos em momentos complexos e decisivos, fizemos desse movimento um lugar de muito apoio e acolhimento pra nós três. Hoje vejo mais do que nunca que é importante não romantizar, é importante não romantizar coletivos e relações só por estarem envolvidos em causas necessárias, é importante a malandragem de ler as linhas tênues e é muito importante observar os mecanismos do sistema que afetam relações e é insustentável estar presente e saudável num ambiente de relações tóxicas estagnantes, ainda que estas tenham um potencial inquestionável.
Não podemos forçar relações e passar certos panos só por estarmos entre mulheres, é errado achar que estamos na mesma vibração e que todas nos representam só porque temos um opressor em comum.
A Yoni foi uma fase muito rica e de qualquer forma sou grata a elas por termos feito tudo o que fizemos e também pelas pequenas sementes que a Yoni plantou e que hoje colhemos individualmente. Por exemplo, agora eu e a Karen Santana trabalhamos juntas no novo disco dela e o projeto tem prosperado num fluxo massa. Faço parte de alguns coletivos e faço várias collabs, sou muito grata por todo mundo que soma e já somou comigo, amo estar em bando, mas hoje meu carro chefe é, novamente, solo.
Straditerra: Nessa sua trajetória audiovisual você trabalhou também com muitos mc’s de grande reconhecimento nacional como Victor Xamã, Nill, ManoWill, Cris Snj, Brisa Flow, Dory de Oliveira, Lucas Boombeat, Laysa, Preta Ary, Killa Bi, 1lum3, Sergio Estranho, Makalister, e vários outros. Com o VXamã, inclusive, você teve um videoclipe indicado ao título de melhor de 2019 pelo prêmio Genius Brasil de Música Brasileira. Queria que você falasse sobre a experiência e oportunidade de trabalhar com esses artistas, que se destacam de formas tão variadas dentro da cena nacional.
Esses artistas são de grande valor, mas não sei se de grande reconhecimento, infelizmente. Perto do valor deles, esse reconhecimento tá distante. Todos esses têm trampos muito pesados. As oportunidades rolaram bem porque penso que são artistas que se encontram num patamar de reconhecimento parecido com o meu, onde o mercado artístico já nos conhece mas ainda nega um pouco o retorno.
Esses específicos, penso que são artistas onde nos trombamos em momentos muito oportunos, pessoas que não só estão se profissionalizando melhor, assim como eu, como também estão atingindo um certo reconhecimento, ainda que pequeno, desses anos pra cá. Acho que trilhamos isso bem conectados, paralelamente. As experiências foram muito ricas e intensas, foram diversas. É muita gente envolvida.
No final de 2019 rolou essa premiação onde eu e VXamã nos vimos indicados ao lado de pessoas grandes como Tássia Reis, Djonga, Emicida, Majur, Pabllo Vittar, Rincon Sapiência, Black Alien e vários outros nomes pesados. Nos vimos ao lado de videoclipes de orçamentos altos e grandes produções com VECG [Verde Esmeralda & Cinza Granito], que foi um clipe feito super rápido e sem orçamento. Um trampo com colagem manual, fotografia em cybershot, com a linguagem under.
Por mais que eu não seja a maior fã desse tipo de classificação, ver esse trampo ali foi um termômetro legal sobre quem está nos vendo e sobre como andam as concepções de qualidade. Trabalhar com arte é sempre imprevisível, história, entre afetos e podres, é o que não falta. Mas posso dizer que todos esses, no geral, me respeitaram como artista e com muitos eu consigo ter uma liberdade e confiança criativa grande e isso pra mim é uma das coisas mais essenciais pra um trampo rolar bem.
Como artista, ao experienciar esses trampos, é uma caminhada forte que se trilha, porém posso te dizer que não é fácil ser artista visual trabalhando com o cenário da música. No geral da cena rola bastante desrespeito e desvalorização entre os próprios artistas, não só do mainstream pro under, mas dentro do próprio under.
Costumo falar que precisamos olhar pras nossas relações entre artistas urgentemente, arte é política, política é saúde. E sendo assim, precisamos estar atentos e perceber onde as relações podem se tornar tóxicas ou opressoras, dando vazão a um desrespeito a partir de um egoísmo que é muito presente na personalidade de qualquer artista. É inerente do artista de qualquer área, todos temos uma relação muito próxima com o nosso ego. Por isso sempre trago essa questão, não presto serviço, sou artista como você. Não vou trabalhar pra você e sim com você.
Grande parte posso dizer que respeita o meu trabalho, mas também posso dizer que estamos longe de viver relações saudáveis e dinâmicas revolucionárias. A teoria está disseminada, mas é preciso sair da zona de conforto, se não a prática não funciona muito.
Tenho muito orgulho de todos os videoclipes que fiz, são mais de 50, gosto muito de todos esses artistas que você citou, muitos inclusive a nível pessoal, mas sinto de deixar esse apelo. Vou considerar um sucesso próspero na minha trajetória quando eu estiver trabalhando não com nomes grandes e sim com nomes que se respeitam além de nomes, que se respeitam e prezam pelas suas saúdes. Novamente: Arte é política, política é saúde, saúde é revolução.
Para conhecer mais a fundo o trabalho da Isa Hansen, acompanhe o site e as redes sociais dela.
Fotografias: Tamiris Alves @ventoesol