Por Gustavo Silva
Calmo tipo Godzilla, Matheus Coringa lançou o seu segundo álbum de estúdio “Loops Abissais”, com dez faixas autorais depois de um período de pausa nas criações do artista.
O projeto surgiu da inquietação do artista diante da atual situação não só do país, mas também da cena em que está inserido. “Loops Abissais” traz um mergulho em si e na escuridão, fazendo referência às criaturas abissais que vivem na zona do oceano onde a luz do Sol não chega. O álbum convida o espectador a mergulhar junto e contemplar os conflitos, as sombras, a escuridão e a anarquia como parte do processo.
Despertando para o mergulho nas Zonas Abissais
Trocamos uma ideia com o Coringa sobre esse novo trabalho e sua temática, trazendo como destaque as Zonas Abissais, áreas profundas do oceano onde a luz do Sol não chega, e lá as criaturas trabalham com a luminosidade de outra forma, muitas vezes produzindo a sua própria luz. Nos “Loops Abissais”, Coringa aceita encarar a vida na escuridão, mas propõe a possibilidade de ser sua própria luz, tendo a arte como fonte da sua bioluminescência.
“Puramente a minha Arte e a forma como ela se propaga e é devorada… essa é a minha luz, minha força. Enquanto eu me mantiver vivo respirando e fazendo arte, eu sei que vou produzir minha própria luz independente do quão profunda a nossa atmosfera se encontra”.
Passando um período em pausa nas criações e agora chegando com este novo trabalho, Coringa se viu motivado por diversas inquietações diante da atual situação não só do país, mas também da cena, que despertaram o artista a sair da pausa e propor esse mergulho profundo nos “Loops Abissais” trazendo os holofotes para o underground.
“A estagnação coletiva que a ‘cena’ nacional se encontra, tanto nas camadas mais vistas quanto nas camadas mais ‘abissais’, rs, foram minha motivação. Acredito que a pandemia dificultou muito nosso processo de desenvolvimento artístico e ORIGINAL como um todo. Nos afastamos muito, incluindo eu, dessa projeção gigantesca que o Rap nacional tomou, e acaba que temos que fortalecer novamente colunas que foram enfraquecidas como o cenário underground ou experimental como muitos conhecem”.
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Criaturas das profundezas gerando luz
Além da busca por fortalecer o underground do qual faz parte, Coringa exibe neste novo trabalho um grande amadurecimento desde o seu primeiro álbum “Nictofilia”, com um forte processo de evolução tanto na sua escrita quanto na visão dessa atmosfera de escuridão que contextualiza seus trabalhos.
“Foram 5 anos de diferença desde o lançamento do primeiro álbum, ainda um menino kkkk. Queria mostrar que a escuridão nunca me assustou, pelo contrário eu sentia conforto nela, por isso ‘Nictofilia’ soa mais rebelde, mais afrontoso, porque de fato era, mas ele deixou um breu significativo na cabeça dos meus ouvintes, pois mesmo após tanto tempo poucos conseguiram digerir de fato, por quê?! Porque eu só falei sobre o conforto, faltou o desconforto na escuridão, a origem da nossa escuridão, a nossa reação ao se aprofundar cada vez mais na escuridão. Todo o processo por trás do que me fez sentir nictofilia eu só mostrei em ‘Loops Abissais’, de uma forma mais madura, mais exposta, mais fria porém mais empática. Da empatia surgiu a necessidade de eu tentar ajudar criaturas das profundezas a criarem luz também, independente da onde viemos, todos nós temos potencial pra fabricar a nossa própria luz e como eu sinto que consigo fazer isso, quero que meus ouvintes consigam também.”
Para nos ajudar a enxergar melhor no escuro, Coringa convocou um time de peso para criar a ambientação deste trabalho, um elemento de destaque de “Loops Abissais”, que carrega com força nas produções de Noshugah, iiaanco, Campoy e DJ Tadela a atmosfera desse mergulho profundo. Esse também foi o primeiro álbum que Coringa não fez nenhum beat, agregando maior valor à escolha e conexão com esses produtores que aprofundaram tão bem a sua vibe soturna junto à temática da escuridão abissal.
“Mano, eu fechei com o time perfeito, todos eles em algum momento eu já trombei pessoalmente. O iiaancoo, o Tadela eu sempre trombei em estúdio então como eu sou bem quadradão no meu gosto pra beat, essa parada darkside a galera já sabe que é comigo, não teve tanta dificuldade. O Noshugah e o Campoy me deram a atmosfera perfeita pra eu me aprofundar na parte lírica, principalmente o Noshugah que anotou 6 produções no disco. Como eu gravei o disco com ele e o Campoy – que deixou um beat também tirando a mixagem e masterização do disco – pela S.H.E.I.L.A Records, eu convivi muito tempo com os dois, e eles captavam cada vez mais a essência crua da minha arte. Nada mais justo que essa sensação se propague junto ao trabalho, tanto que ‘Calmotipogodzilla’ foi um beat que o Noshugah fez de rolê na madrugada e eu escrevi na hora. No outro dia fomos pro estúdio e gravamos, no timing perfeito. Acho que a parada é trampar juntos, fazer todo esse processo de estudo artístico lado a lado que dá esse resultado autêntico e visceral.”
Além dos produtores, as participações dos MCs vieram fortes apesar de estarem em apenas duas faixas. Coringa trouxe grandes destaques do underground com nabru, uma das maiores revelações do contexto recente da cena nacional, e Sergio Estranho e El Mandarim, nomes que vêm fazendo um corre forte junto ao Rancho Mont Gomer. Esses MCs trouxeram uma conexão forte com a vibe e a temática do álbum, sem destoar essa ambientação em nenhum momento.
“Essa conexão rolou de forma experimental e pura. O Sergio Estranho e o El Mandarim que são irmãos foram um dos primeiros manos que eu fiquei hospedado quando eu vim pra SP pela primeira vez, tenho um carinho absurdo pelos dois e admiração artistica pra caralho. Pra mim Morlockz foi um dos maiores grupos do Rap nacional e muitos nunca escutaram, kkkkkk. Eu me identifico muito com eles e com a forma deles pensarem e agirem perante as tendências da cena atual. A nabru eu conheci num rolê com eles, kkkkkkk, em São Paulo também. A gente já tava ligado um no outro, no rolê a gente se falou e tal, mas no dia ela não sabia que eu era o Coringa e eu não sabia que ela era a nabru. Depois começamos a conversar melhor, fui acompanhando os trampos dela cada vez mais e sempre me identificando pela abordagem crua e essa vontade única de continuar se expressando e se reinventando a todo custo, totalmente experimental. Quando eu pensei nos feats do disco, eu só conseguia pensar nesses três nomes, eu não convidei mais ninguém.”
“A nabru tinha acabado de chegar em SP, eu já tava gravando o disco. Escutei o beat do Campoy, fiz um refrão e pensei nela. Só mandei o refrão e perguntei se ela topava participar, mas que eu já tava gravando, kkkkkk. No dia da gravação do estúdio ela levou o caderninho e me perguntou se eu tinha escrito algo, eu disse que só tinha o refrão. Ela terminou os versos na hora, o beat era todo dela, eu até falei pro Campoy: ‘Deixa ela rimar o quanto ela quiser. Ela cansou, nós bota o refrão e eu sigo nos versos’. Porque eu sinto uma liberdade poética na nabru muito foda, e quis dar toda liberdade pra ela amassar até onde ela quisesse, e foi o que aconteceu. Eu não sei se foi viagem minha, mas logo depois dela gravar, ouvindo o som, ela meio que lacrimejou ouvindo como ficou. Não perguntei na hora, porque sei lá, vai que não era e eu tava moscando, mas se foi, eu sei que ela deu valor pro trampo da mesma forma que eu dei, e todo esse processo foi importante pra mim e pra geral que participou do disco.”
Arte profunda
O contexto de pandemia certamente instigou Coringa a trazer um novo trabalho para a rua, a compartilhar visões e sentimentos desse momento, mas também é um cenário que impossibilita várias atuações como artista para a divulgação e proliferação desse trampo.
“Tudo que tá acontecendo até então foi de maneira orgânica, as páginas, os views, citações foi tudo de maneira orgânica e eu tô muito feliz com o resultado e críticas de quem escutou. Sei que muita gente não vai ouvir porque não chegamos nas camadas mais atrativas ou vamos passar despercebido, mas como um bom artista experimental que joga com o futuro ao seu lado sempre, eu sei que essa obra tem seu valor e ela só vai crescer à medida que regamos nossa curiosidade pelo desconhecido. Ainda assim, sei que vai ser um grande desafio propagar esse trampo, contudo não consigo me desanimar com números, sei que a nossa arte é bem mais profunda que um sistema binário de 0 e 1.”
Pra fechar o nosso papo, busquei saber do Coringa quais as influências, artistas e sons, que têm batido mais forte nos fones dele, e inspirado as criações nesse momento.
“Sinceramente não venho escutando nomes tão convencionais, ando até um pouco desligado sobre o que tá rolando e acontecendo aqui ou nos Estados Unidos. Porém, eu tive um contato muito massa com a cena de Boombap alemã e descobri uma ala muito foda que deu inveja pela consolidação de nomes nesse segmento. Nomes como Ulysse, KwamE, Buddha, SSIO, Argonautiks e grande parte dos rappers que consolidaram não só o Boombap lá, mas o Rap alemão em si, são imigrantes ou filhos de imigrantes, o que consolida uma cena bem forte culturalmente também. Vou deixar uma playlist do Spotify que eu tenho acompanhado bastante sobre essa cena: https://open.spotify.com/playlist/3zl4Xh7jlynnRKjtMJiwsG. Obrigado pela conversa e o espaço família, foi uma honra trocar essa ideia.”
Nós agradecemos muito o Coringa pela força, por esse papo e pelos trabalhos lançados. O álbum “Loops Abissais” está disponível em todas as plataformas de streaming.
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