Salve família Straditerra, Gustavo por aqui mais uma vez, e hoje trazendo um papo muito especial com um multiartista que inspira e traz respiro, pra mim, e para toda uma cena cultural atenta às suas criações materiais e imateriais.
Diretamente de Guarulhos (SP), o multiartista Novíssimo – na visão dele, já não mais tão novo assim – Edgar, despontou do cenário underground com uma identidade e autonomia muito fortes, criando uma caminhada múltipla na arte, através do som, da moda, do visual, da performance, encontrando em tudo uma grande desculpa pra fazer arte.
Produzindo a própria gasolina
“Ideia de progresso com o funk é o que combina
Quero ver nossa favela produzindo a própria gasolina” Edgar – Carro de Boy
No seu corre, Edgar sempre demonstrou muita autonomia e identidade em tudo que envolve sua expressão artística, desde seu estilo até a própria musicalidade. Nesse sentido, para o artista, o caminho que possibilita diferentes quebradas e diferentes artistas a conseguirem criar trabalhos com mais identidade, com a própria cara, é “produzindo a própria gasolina”. “Quando a gente começa a ser nós mesmos os nossos produtores, nossos investidores, empresários, é sobre autonomia. A ideia é que cada pessoa autônoma consegue ser sua própria abolicionista, ela se livra de algumas amarras”, explicou Edgar.
“É aquela grande ideia, faz o seu meio, e sai desse meio aí, tão te sugando. Se tão te sugando no meio que você está, faz o seu meio. É a melhor maneira de tentar se desprender de algumas amarras, mas acaba se prendendo em outras algemas. O sistema capitalista é bem complexo, mas é melhor a gente conseguir vender o nosso produto a um preço que fique 100% conosco, do que a gente fazer uma exportação e acabar pagando mais caro pelo que é nosso. É tipo quando você recebe um edital, precisa emitir nota fiscal, têm vários descontos aí, nunca chega o valor inteiro pra ti. Nas produções artísticas, cada pessoa tem a sua maneira de produzir, isso que eu tô falando na questão da gasolina naquele contexto, é sobre uma autonomia no mercado de trabalho, enfim. Quando a sua arte chega num mercado artístico que tem bastante dinheiro envolvido, quando sua música chega no mercado fonográfico, quando sua arte chega nas galerias, quando o gelinho que sua mãe faz chega no cara que vai comprar no farol, quando chega nesse ponto estratégico, sim, nós mesmos que estamos sendo os frentistas dos postos de gasolina que idealizamos”.
Ainda com autonomia, com uma identidade estabelecida, e produzindo a própria gasolina, Edgar reconhece o peso das diversas formas de censura no seu trabalho ao longo da sua trajetória. “Eu acho que era mais livre a minha expressão há uns seis, sete anos atrás. Desde então, além do autoboicote, da autocrítica violenta que nos colocamos, tem a influência de outras cabeças, outras pessoas, lugares de fala. Nem tudo é censura, mas algumas coisas precisam ser lapidadas, melhor ditas, para não serem distorcidas e confundidas”, explicou.
“Algumas coisas não precisam de explicações, são auto-explicativas. A censura, pra mim, quando acontece, é quando alguma coisa ainda não está explícita, quando algo tá confuso rola censura, por parte de editora, gravadora, produtora, até marca, depende da relação do projeto. Mas a censura existe, sempre existiu e vai continuar existindo, por isso que eu tento provocar e usar o máximo da pequena liberdade de expressão que eu ainda tenho”, disse Edgar.
Edgar: Multi Artista
Com uma arte que não se taxa e não se limita, Edgar tem ótimos trabalhos audiovisuais, uma identidade única na cena musical, expressões fortes através da moda e da criação material e imaterial. Reutilizando criativamente os seus trabalhos em diferentes plataformas – o que também parte de uma necessidade de fazer o próprio corre virar de forma independente – Edgar vê a atuação de multi artistas como uma tendência para os nomes independentes. “Eu acho que vira uma tendência e a problematização em cima disso é quando jovens artistas, ou velhas marcas, percebem essa tendência e me colocam num lugar de referência, e aí ou eu não recebo créditos, ou eu não sou chamado pra trabalhar, porque eu tô só no tratamento do projeto, minha foto tá só na apresentação e não na execução do projeto”, afirma Edgar.
“Eu acho fantástica a maneira que eu consigo estar até na apresentação do projeto de um outro artista, fazendo a minha arte. Mas seria ainda mais incrível se esse artista tivesse entrado em contato comigo e falado: “Cara, vamos fazer juntos. Vamo trampa, tô com uma ideia aqui e tem tudo a ver. Já vi que você faz umas paradas assim, vamos dialogar”. Eu acho que isso ficou muito perdido na tropicália artística, porque antes tinham compositores, músicos, cantores, eles se juntavam e faziam um trabalho magnífico. Hoje em dia um compositor de voz horrível tenta fazer qualquer coisa, tocando mal um violão, e vice-versa e aí saem as coisas que acabam saindo. Não estou dizendo que são ruins ou boas, mas não tem uma coletividade”.
Arte é necessidade, arte é política
Para Edgar, não existe palavra melhor para descrever a sua relação com a arte do que “necessidade”. “Eu faço porque eu necessito fazer. Existe uma necessidade dentro de mim gritante que não me deixa dormir, me faz acordar cedo e eu tenho que criar, tirar da minha cabeça, sejam os personagens, roteiros, as ideias, as histórias que vem, as músicas, as críticas também, até cozinhar e fazer vídeo de cozinha, tudo isso é uma necessidade de expressar, de tirar pra fora, de se comunicar”, explicou.
“Minhas artes não são perguntas em busca de respostas, são bastante retóricas na verdade, elas nem tem respostas, são indagações, filosofias, então tem que tá sendo colocado pra fora. Elas nascem de uma necessidade, todo tipo de arte que eu faça, seja na moda, seja na música, na arte contemporânea, na performance, o impacto que vai ter no público é consequência do impacto que teve em mim”.
Nas músicas, na cozinha, nas falas e no trampo em geral de Edgar, pautas como agricultura orgânica, valorização e defesa aos povos originários, à causa indígena, o contato e a relação vital com a natureza, sempre estiveram presentes naturalmente. Aplicando a arte em sua função política, e subvertendo diferentes conteúdos e mídias, Edgar torna possível um debate político sem toda a histeria e o obscurantismo que envolvem esses temas atualmente. “Eu creio que a arte é o melhor meio pra poder conseguir falar sobre política sem ficar uma coisa enfadonha, as pessoas conseguirem se divertir também, como o próprio humor tem esse poder de ensinar fazendo as pessoas rirem, até de fatos trágicos. Então eu acho que a arte consegue ser um baita mestre nisso aí”, disse.d
“Eu e outras pessoas conseguimos tratar desses temas tão delicados e obscurecidos, trazendo essa flexibilidade na fala, na música, no visual. A subjetividade às vezes não é dizer é escrever, não é vestir é pendurar, essas coisas minuciosas, esses pequenos detalhes, fazem grande diferença nessas comunicações. Mas eu acredito nessas diferentes mídias, e em quebrar essas mídias também, ser iconoclasta, usar elas a favor de derrubar elas, não transformar em um império”.
Humanidade: uma distopia
Tomando a arte em seu caráter político, questionei Edgar sobre a crença dele, em um futuro menos distópico para a humanidade. Um futuro com uma sociedade realmente se mobilizando pelo meio ambiente e se voltando para uma ligação maior e mais honesta com a natureza, para além de uma mobilização pontual e simplista que atenda às vontades capitalistas. “Parece meio fantasioso mas eu só consigo acreditar num futuro menos distópico pra humanidade, quando eu consigo novamente acreditar em uma força alienígena, que vai invadir o planeta Terra, com um pensamento dual de separar o bem do mal, e levar o mal consigo ou exterminá-lo”, contou Edgar.
“Se a ONU não intervém em países que estão em guerra, nós mesmos não intervimos, vai ter que esperar uma nova inteligência fora da Terra vir a intervir. Então eu acho meio complexo, e cai num lugar de ficção científica, onde algumas pessoas vão querer ridicularizar, e outras só vão acreditar que os humanos vão conseguir viver bem com a natureza quando Jesus Cristo voltar. Então é um lugar muito delicado, eu não sei do futuro e nesse momento nem arrisco falar sobre ele, mas se você prestar bastante atenção no presente, tá tudo bem debaixo do nosso nariz”.
Rock, Samba, Rap… dane-se o ritmo
Em entrevistas de 2016 Edgar dizia ser desligado do próprio Rap, e do que estava acontecendo na cena do Rap nacional. Em 2017 o artista assume novos compromissos e uma nova seriedade na sua relação com a música e com as suas próprias produções, mas o contato com a cena segue até hoje um caráter distante. “Meu contato com o Rap nacional atualmente, as pessoas que eu converso são alguns integrantes do Projetonave, o Aquiles principalmente, Black Alien, Bia Doxum, Tássia Reis. Converso mais com Kiko Dinucci, Juçara Marçal, Anelis Assumpção, Céu, Zé Nigro, essa galera do que com a galera do Rap em si. Eu até vou nos rolês, colo nas batalhas, mas não sou tão inserido, parece. É engraçado, eu faço Rap até hoje, solto os Rap uma galera vem, me manda foto, áudio, vídeo falando: “Carai não vejo a hora de você soltar um CDzão de Rap. Esse daí tá foda, esse CD novo aí Ultrassom, parabéns. Mas mano quando você vir com um CD de Rap com essas ideias aí”. Eu falo: “Carai truta, que que tá acontecendo?”, disse Edgar.
“Então as nomenclaturas, as coisas, estamos vivendo um momento de anomia, os nomes não importam mais, dane-se, então eu faço o que eu quero, o que me deixa feliz. Se as pessoas vão achar que é música eletrônica, se é Rock, se é Samba, se é Rap, elas que façam terapia, eu tô bem resolvido, fazendo um desabafo musicalizado, dane-se o ritmo”.
Desabafos e a inspiração instrumental
Para 2021, Edgar está preparando o seu novo álbum “Ultraleve”, que já conta com o single lançado “Também Quero Diversão” e outros desabafos. “O desabafo de Ultraleve vai vir legal, mais carismático. Eu tô envelhecendo, tô com 27 anos, tem faixas do Ultraleve que eu escrevi em 2016, outras eu escrevi no meio da quarentena, então é uma mescla de Edgar muito difusa, tá um processo bem legal”, disse Edgar.
“Basicamente falando, os desabafos permeiam os alicerces da música brasileira, da estrutura heteronormativa, patriarcal, misógina e fascista. As três pilastras: a Bíblia, o Boi e a Bala, a bancada evangélica, o agronegócio e a bancada militar, em cima desses três poderes eu vou fazendo alguns desabafos”.
Pra fechar o papo pedi ao Edgar para compartilhar os sons que estão batendo forte nos fones dele. “Meu irmão eu escuto pouca música, é doido isso né? É engraçado, acho que ninguém vai entender isso. Mas as músicas que eu escuto são repetidas, musicalmente eu vivo num looping. Praticamente 2019 e 2020 eu passei escutando as bases do Ultraleve até surgir as letras, e até agora eu tô escutando pra decorar e ensaiar, então eu me escuto bastante querendo ou não, mas não por um ego, por um processo criativo mesmo”, contou Edgar.
“Eu escuto bastante sem a voz, escuto bastante música instrumental, prefiro música instrumental. Pra você ter uma ideia eu coloco tipo “Hang Drum” no YouTube e deixo lá três horas tocando, barulho de chuva, cuencos tibetanos, flautas indígenas, então é uma coisa muito engraçada o meu jeito de escutar música. A galera que vai lá em casa fala: “Mano, sua casa parece um consultório, bota um Trap aí”. E não tem, às vezes, eu ponho, rola de estar no carro de um amigo e coloca um Dub, essas coisas novas que chegam, que eu ouço de tabela, tipo A$AP Rocky, FKA Twigs, acho massa mas eu não entendo muito bem, então eu vou de outras coisas, gosto mais de música instrumental”, concluiu Edgar.
Satisfação enorme ao Edgar por esse papo firmeza! Acompanhem o multi artista nas suas redes sociais, e ouçam seus trabalhos disponíveis em todas as plataformas de Streaming