por Gustavo Silva
Em entrevista à Straditerra o beatmaker paulistano falou sobre sua trajetória artística e o lançamento do seu novo projeto.
Raymond Murray Schafer, compositor, escritor, educador musical e ambientalista canadense, iniciou nos anos 60 estudos que resultaram no desenvolvimento do conceito de paisagens sonoras e ecologia acústica: o estudo e análise do universo sonoro que nos rodeia.
Uma paisagem sonora é composta pelos diferentes sons que compõem um determinado ambiente, sejam esses sons de origem natural, humana, industrial ou tecnológica. Segundo Schafer, o mundo é uma composição musical que se desenrola a nossa volta; somos, simultaneamente, audiência, apresentadores e compositores.
Esses conceitos desenvolvidos pelo canadense atravessaram todo o continente americano e chegaram ao Jardim Jussara, na zona oeste de São Paulo, até os ouvidos de Denis Henrique da Silva Duarte. O beatmaker de 43 anos mais conhecido como Denom, absorveu e canalizou os conceitos da ecologia acústica em seu mais novo trabalho, desenvolvido em colaboração com a Straditerra, a mixtape “Paisagens Sonoras Orbitais”, com a qual o artista promove uma exposição de telas através do som.
Em entrevista para a Straditerra, Denom falou um pouco sobre sua trajetória: o primeiro envolvimento com a música aos sete anos de idade; a influência de sonoridades naturais, instrumentos indígenas e musicalidade de matrizes africanas na sua arte; as referências musicais que vão de manifestações populares brasileiras a J Dilla; o trabalho realizado no Teatro Municipal de São Paulo; as características mutagênicas das suas produções sonoras; além da produção da sua primeira mixtape que vai ser lançada neste ano!
Então se prepare para ser apresentado, ou conhecer mais a fundo, a arte e a identidade desse beatmaker que, através da música analógica e eletrônica estabelece um diálogo entre o passado e o futuro, homenageando a diversidade, a itinerância e a simplicidade.
P: Primeiramente gostaria que você começasse falando um pouco sobre sua trajetória com a música. Como você começou a se envolver e trabalhar com música, como foi o seu percurso até aqui e quais são suas referências musicais?
R: Comecei a trabalhar aos sete anos no restaurante de fundo de quintal da minha família, e com os músicos que tocavam no salão ia aprendendo os primeiros acordes no violão, a percussão já era presente também, tinha uma equipe de baloeiros na época que tocava percussão na formação de escola de samba, com surdo, reco, repinique, tarol, ganzá de platinela e canto dos sambas da época, aí fui aprendendo a ler cifras e tocar violão no próprio restaurante. Trabalhar com música foi algo natural dos 16 anos em diante, tocava no restaurante e levantava um troco ao menos pra manutenção dos instrumentos e material de estudo. Minhas referências musicais são diversificadas, manifestações populares brasileiras, jazz, os produtores de beats como por exemplo: J Dilla, Pete Rock, Madlib, Damu the Fudgemunk, Dibia$e, Ras G, Organic the Kid, Mujo.
P: Acompanhando seu trabalho e consumindo sua música, é possível perceber que suas composições são criações muito orgânicas e cheias de personalidade. A influência de sonoridades indígenas, ritmos africanos tradicionais e musicalidade de religiões de matrizes africanas é muito presente. Queria saber como se deram essas influências sonoras, como você entrou em contato com essas musicalidades e buscou incluir nas suas composições?
R: Eu cresci exatamente nesse ambiente, montando rampas com os mais velhos pros campeonatos de skate na minha rua, onde a molecada puxava uma extensão de casa pra sonorizar os campeonatos da rua com heavy metal e punk rock, de frente pra minha casa tinha um terreiro de candomblé, eu convivia com o pessoal do terreiro que me presenteava com fitas cassetes dos sons que eu perguntava de quem era. Me lembro perfeitamente do dia em que ganhei uma fita que tinha faixas do Run D.M.C., LL Cool J, J.J. Fad, The Fat Boys. Aos 19 eu encanei que meu violão estava sem ritmo, comecei a estudar percussão, não tinha dinheiro pra comprar nenhum tambor, estudava técnica de djembe [tipo de tambor originário da Guiné na África Ocidental] em galões d’água. No começo vivia de eventos com o pessoal do circo e tocava em aulas de danças brasileiras do Maurici Brasil e da Leticia Doretto, onde tinha que estudar manifestações populares brasileiras pra tocar e cantar durante as aulas. Há 25 anos toco para apresentações de dança e estou há nove anos consecutivos tocando diariamente na escola de dança do Teatro Municipal de São Paulo.
P: Ao longo da sua trajetória a música foi trabalhada de diversas formas. Vemos você desenvolvendo composições de letras, interpretação vocal, produção de beats, enfim, como você encara a sua expressão artística musical hoje? Você busca manter foco em uma mídia e plataforma específica ou suas criações podem assumir várias formas ao longo do seu trabalho?
R: Minha expressão artística musical vejo bem diversificada, por isso o nome do canal do YouTube “Registros Gerais”, que vem da sigla RG falando sempre sobre a minha identidade. Gosto de todas as frentes. Pra rimar tenho que ter base, e pra ter base tenho estudado e me aprofundado mais sobre essa linguagem, sobre as técnicas dos mestres no ofício, mas não me prendo a nenhum padrão, gosto mesmo é da espontaneidade com a qual conduzo as produções sonoras. Elas podem assumir várias formas ao longo do trabalho, são mutagênicas.
P: Podemos perceber que você tem uma preferência por realizar as gravações dos seus trabalhos em ambientes não tradicionais, como padarias, supermercados ou até a própria calçada da rua. Como você vê essa influência do ambiente nas suas gravações?
R: Poderia gravar todas faixas num fundo verde e fazer montagens, poderia filmar tudo de um pequeno e antigo depósito de restaurante que hoje chamo de estúdio, mas gosto mesmo é de diálogo. Procuro lugares inusitados geralmente onde não se pensaria que seria capaz de produzir música. Ao estar no lugar vejo as faixas que ainda não foram gravadas e procuro aquela que quero apresentar que melhor se encaixa no contexto, ou a que mais causa contraste com os ambientes. A grosso modo o gênero musical é mutante, então a escolha dos locais é uma forma de criar um contraste entre expressividade e indiferença. Mas gosto da influência da rua, das calçadas dentro do que produzo, é uma forma de homenagear a simplicidade. Sinto que esse ambiente me traz mais veracidade na escolha do que tenho a apresentar. Escolho outros lugares inusitados e imprevisíveis só pra dar um ar de desapego, poderia estar numa fila de banco ou numa clínica veterinária, faria com a mesma postura de apresentar esses beats na sala do Teatro Municipal, na sala São Paulo ou em qualquer outro grande palco de qualquer lugar do planeta. Itinerância e diversidade me inspiram muito.
P: A sonoridade orgânica das suas criações se dá muito pela mistura de sons e musicalidades que você traz através de samples e instrumentos diversos. Como você trabalha com essa junção de elementos contrastantes em busca de uma harmonia sonora, ao mesmo tempo em que cria sonoridades completamente inéditas?
R: Quando comecei a mexer com música eletrônica achava os timbres muito artificiais, aí acho que a poesia da elaboração se dá em botar o ouvinte numa situação de não entender se o que ouve nas minhas produções é instrumento acústico ou eletrônico. Procuro trazer som de fita, acho que música é uma boa forma de expressar sentimentos, o som da fita é uma forma de estimular a memória afetiva de quem escuta, de forma a dar ao ouvinte a sensação de que aquela música existia a muito tempo antes do tempo em que foi produzida, é uma forma de estabelecer diálogo entre o passado e o futuro, através da música analógica e eletrônica, no presente (sempre).
P: Ao longo do seu trabalho características musicais de gêneros como o Ska, Dub, Reggae, são captadas muito fortemente, além da frequente influência do trabalho do músico Victor Rice, que também trabalha com bastante propriedade esses gêneros musicais. O quão influente são esses gêneros e o trabalho de Victor Rice nas suas criações?
R: Acho que o Reggae foi um dos primeiros gêneros musicais em que houve a evolução da música eletroacústica, onde uma pessoa começou a cantar com um disco ao invés de uma banda acompanhando ao vivo. Admiro muito a linguagem de música dos soundsystems pois é de rua, itinerante, como dizem meus amigos do Dubversão Sistema de Som: “Onde tiver uma tomada podemos montar um soundsystem”. Admiro muito também a linguagem do Victor Rice e a forma com a qual ele concebe música, por isso escolhi ele pra mixar algumas das minhas faixas, pois gosto de ver a mesma ideia sendo apresentada de formas diferentes, amo a linguagem do improviso, piro em fazer freestyles nos beats que crio.
P: Neste momento você está desenvolvendo uma nova mixtape, certo? Pode dar alguns detalhes da sua nova produção para nós, como o nome do trabalho, número de faixas, características sonoras da mixtape, além de uma previsão de lançamento do material final?
R: Sim! Estou produzindo a primeira mixtape com nove faixas, pretendo lançar entre julho e agosto, estou com três faixas finalizadas e mocadas pelo meu mano jedi da mixagem Fernando Narcizo, técnico e engenheiro de som da música eletrônica e acústica de altíssimo nível de qualidade. O nome da mixtape é inspirado e uma homenagem ao músico e pesquisador Murray Schafer com o conceito de paisagem sonora. Pra mim fazer música é grafitar um muro, pintar uma tela, criar um ambiente, por conta desse conceito chamo a mixtape de “Paisagens Sonoras Orbitais”. Quando digo órbitas me refiro aos loops, à repetição de trechos em forma cíclica. É uma exposição de telas através do som. Gravo os beats a partir de discos recortando e sequenciando na mpc1000 e na sp404, passando tudo por gravador de rolo e mixando e masterizando tudo digitalmente. Vai ficar linda essa primeira safra de beats produzidos ao longo dessas duas últimas décadas.
P: Para finalizar eu gostaria de uma visão sua sobre a cena nacional dos beatmakers. O que você tem consumido de músicos e beatmakers brasileiros, e o que pode nos deixar de recomendação?
R: A cena atual do beatmaking está evoluindo muito de uns tempos pra cá, amo a cena criada pelo Dj Niggaz na casa Brasilis. O beat Brasilis reúne muitos beatmakers semanalmente, lá que conheci muita gente boa que me ensinou muito sobre a arte de samplear e produzir beats: o Malak Beats (quem me ensinou algumas técnicas de sequenciar na Roland sp404), o Sala 70 (quem me passou a visão de como obter uma Roland sp404 e como salvar os arquivos nela), o A.D.S. da família Induz Music fazendo os beats mais simples e expressivos na repetição. Recomendo ouvir essa galera, Malak Beats, Sala 70, A.D.S. (Induz Music) e o coletivo “Se Passando REC”.