e n t r e v i s t a
Em 2013, na busca por autoconhecimento, um adolescente utiliza todos os seus recursos para construir um androide, um espelho de si mesmo que possa ser dissecado e compreendido analiticamente. O uso frequente de substâncias psicodélicas compradas pela internet faz com que esse alter ego desperte e os remédios estimulantes que deveriam mantê-lo focado na aula passam a ser utilizados como combustíveis para sua obsessão.
VNDROID, por que você não nos conta mais sobre o seu projeto e como ele surgiu?
O processo através do qual cheguei ao personagem V N D R O I D e depois ao álbum Dopamina foi longo e gradual. Começou em 2013, quando fui apresentado ao coletivo de rap Odd Future, Wolf Gang, Kill Them All e, principalmente, ao seu membro Tyler, The Creator. Para mim, que fui fã de rock desde pequeno, o rap não era algo tão atrativo, até que assisti o clipe de Yonkers, no qual um Tyler perturbado e insano come uma barata e depois se enforca. A batida grave e pesada, quase como uma música de heavy metal, a sua voz profunda e suas letras bizarras e introspectivas me fizeram perceber que havia outras formas de rap diferentes daquelas às quais estava acostumado.
Criei nesse ano Mordekai, que seria posteriormente rebatizado Mordekai: O Andróide e, por fim, VNDROID. Enquanto Mordekai, o futurismo não era ainda a temática central, meu foco era na mente humana e na loucura. Meu interesse inicial foi de natureza menos política e mais existencial, numa procura por respostas pessoais minhas. Em 2013, eu estava no terceiro ano do ensino médio e havia sido diagnosticado com Déficit de Atenção e Hiperatividade e com Transtorno de Humor Ciclotímico. Estava tomando remédios psiquiátricos e, paralelamente, utilizando diversas drogas psicodélicas para tentar explorar a minha própria mente e quase entrando em surto. Um dos resultados principais desse período na minha mente foi uma perda da minha noção estável de identidade comigo mesmo e com o mundo à minha volta.
Eu vivia vários momentos de despersonalização e desrealização. O primeiro era uma sensação de que eu não era eu mesmo mas sim alguém observando o mundo por dentro dos olhos de um corpo que parecia ser separado de mim. O segundo era uma sensação de que o mundo inteiro ao meu redor era falso, uma ilusão criada pela minha própria mente, como se estivesse preso num tipo de simulação como em Matrix. Quanto mais eu pesquisava sobre as drogas que usava e outras que nunca usei, sobre as doenças mentais que eu vivia e outras pelas quais tinha curiosidade, sobre o cérebro e sobre o computador e sobre como a distância entre os dois não é tão grande, sobre a internet e os próximos estágios de evolução humana que poderemos alcançar expandindo nossa mente tecnologicamente, mais eu percebia que o cérebro artificial era a metáfora perfeita para falar das questões que me afligiam e para demonstrar um dos meu objetivos principais na época: que a única realidade era a experiência humana e que esta era produto de reações físicas e químicas do nosso cérebro.
O que mudou a partir daí?
Conforme eu desenvolvia esses pensamentos, nunca os desconectei de uma análise política. Quanto mais eu mergulhava no Futuro, percebia que, além de um campo tão interessante para discussões filosóficas, ele era também o cenário da revolução que algum dia havia de ocorrer, afinal, o passado já passou e, no presente, ela ainda não parece ser possível. Eu queria entender como as novas tecnologias que vão ser desenvolvidas ao longo da minha vida vão impactar nossas ferramentas de combate ao sistema.
Marx criou seu pensamento em um momento de mudanças tecnológicas gigantescas que reorganizaram a lógica de produção do mundo que, naquele momento, ainda era muito instável. Essa mesma lógica de produção, hoje, já está totalmente consolidada e estável e, com as condições que temos atualmente, é impossível desmontar o poderio absoluto do Complexo Militar-Industrial unido à Indústria Cultural contemporânea.
Eu vi, nas impressoras 3D, na cultura da pirataria e dos hackers e no uso livre e democrático da internet, as ferramentas para desestabilizar essa ordem material vigente. Eu era otimista nessa utopia e, para isso, defendia a estética futurista e um estilo de vida altamente conectado à internet. Eu acreditava que, a partir das redes sociais, poderíamos mudar o pensamento hegemônico da sociedade, democratizar conhecimento e tecnologias, difundir arte independente livre que competisse com a grande indústria e realizar nossa revolução.
Também pensava que, se chegássemos ao ponto de desenvolver uma simulação perfeita do mundo real, como uma Matrix, poderíamos todos nos mudar para lá e criarmos nossa utopia perfeita de abundância ilimitada. Ou que poderíamos criar corpos robóticos imortais para os quais transferir nossa mente, nos desligando do nosso corpo físico e mundo material. Eu sonhava até mesmo com o momento em que todas as consciências humanas poderiam ser combinadas em uma só e a humanidade alcançaria um outro patamar evolutivo.
Passei então a buscar uma estética do futuro. Meu primeiro ponto de referência foi o Cyberpunk, pelo qual já tinha interesse, mas não tão aprofundado quanto passaria a ser posteriormente. Adotei cores fortes como vermelho, preto e cinza, imagens hiper-complexas, excesso de botões, fios e cabos e, sonoramente, comecei a utilizar sintetizadores cheios de distorção e agressividade, tentando retratar a dureza da sociedade tecnológica atual e a agressividade tecnológica que seria necessária também para derrubá-la.
Conheci pouco depois o Vaporwave e me apaixonei pela estética e pelas ideias dos hackers dos anos 80 e 90. Descobri a famosa frase de Thimothy Learly, com quem já estava familiarizado através de minhas pesquisas a respeito dos psicodélicos, na qual ele dizia que “o PC é o LSD dos anos 90” e que ele faria “com a sociedade, o que o LSD faz com a mente”. ideias essas que inspiraram o surgimento dos cyberpunks e da cyberdelia. Parecia, realmente, que naquela época os Hackers estavam alcançando algo incrível com a Internet mas que, em algum momento ao redor da virada do milênio, tínhamos nos perdido desse caminho, e precisávamos voltar a ele.
Mas aí depois disso você passou por outra mudança na sua forma de ver sua arte?
Sim, hoje eu não gosto de reforçar essa narrativa da tecnologia como algo incrível e iluminador e tomo cuidado para, ao falar dos potenciais incríveis da internet, trazer também a dura realidade do que vivemos nela. Li uma entrevista que me impactou muito na qual o fundador do Pirate Bay e ativista Peter Sunde dizia: “Eu desisto de fazer a revolução pela Internet.” Nesse texto de 2015, ele, desiludido, admitia que não mais via a pirataria e a internet como ferramentas para fazer a revolução. De acordo com ele, a internet não era algo separado do mundo real mas sim parte deste e ela só mudaria quando o sistema político capitalista fosse derrubado por uma revolução, provavelmente armada.
Esse meu novo momento foi marcado por um extremo pessimismo em meus trabalhos e um foco maior na sociedade capitalista contemporânea. Me aprofundei muito mais que antes no cyberpunk, mas eu percebia nele algo que não funcionava mais hoje em dia. O Cyberpunk falava do futuro, de algo que ainda não tinha acontecido, enquanto o Vaporwave fala sobre o presente, pois “o futuro é agora”.
Os autores do século passado, ao construir suas distopias, as opunham esteticamente às imagens utópicas construídas em seu tempo, por isso todas as máquinas nessas histórias contém um número excessivo de botões, fios desencapados e monitores piscantes, numa estética do excesso. Ao mesmo tempo, para se opor à imagem de um futuro pacífico e de unidade política, eles descreviam revoltas populares e regimes ditatoriais que mantinham seu poder através da força.
Essa estética é muito diferente daquela utilizada pelo Vaporwave, que absorve as imagens do futuro utópico, imaginadas paralelamente ao desenvolvimento do Cyberpunk, por aqueles que acreditavam que o futuro seria um lugar maravilhoso. Ao invés de se opor diretamente a essas imagens, porém, o Vaporwave utiliza a ironia e se aproveita do distanciamento temporal para recontextualizar esses sonhos de plástico. O mundo projetado pelo Vaporwave é limpo e esteticamente agradável. As pessoas não se revoltam, pois nem têm mais esperança o suficiente para isso.
São como dois lados da mesma moeda, enquanto o Cyberpunk se rebelava contra um futuro de opressão, o Vaporwave já não consegue mais enfrentar a opressão que está em seu presente.
O capitalismo é hoje uma distopia que conseguiu, através de armas ideológicas e estéticas, se vender como uma utopia com uma eficiência que jamais qualquer sistema conseguiu alcançar. A sociedade, em geral, está extremamente insatisfeita com o mundo atual mas, ao mesmo tempo, desde o fim da URSS, minha percepção é de que muito menos pessoas acreditam em alternativas ao sistema vigente do que antigamente.
O capitalismo conseguiu se tornar praticamente invisível, se apropriando de todos os símbolos de luta. Não somos uma geração de rebeldes revoltados e combativos como nas histórias cyberpunk, nós somos meros observadores e comentadores, temos discussões infinitas em redes sociais sobre uma possível futura revolução mas não temos esperança real de concretizá-la. Revoltados por dentro mas apaziguados por fora, não somos mais a geração rebelde do Punk e do Cyberpunk dos anos 80, somos a geração deprimida e analgesiada do Vaporwave.
Desta união de fases então que surgiu o álbum “Dopamina”, né?
Sim, exatamente. Músicas escritas entre 2014 e 2017. Depois disso começou uma nova, quarta fase, em que acho que ainda estou. Mantendo tudo o que construí até então, comecei a focar mais em elementos sociais, emocionais, relações entre as pessoas, trazer mais a vivência dos ‘rolês’ e diversão também pra dentro das músicas, estruturadas de forma mais tradicional e com vocais mais melódicos.
Fruto dessa fase, ressoa os lançamentos que vem sendo lançados periodicamente no canal VNDROID. O último foi “pq tÃ0 SéRiO” e o próximo, a chegar dia 16 desse mês “Meu Tempo”.
Dia 16 chega “Meu Tempo”. Você tem algo a dizer sobre esse clipe e a música dele?
Sim, Meu Tempo foi uma música que escrevi ainda pro meu álbum Dopamina, em 2017. A primeira frase que pensei para essa música fala muito sobre ela inteira: “Máquinas de guerra movidas a energia eólica”. Essa imagem, de uma arma, feita para matar, mas movida a energia limpa, me lembra da essência do vaporwave, a contradição de algo bonito, agradável e clean que existe para nos dominar, formas de opressão esteticamente agradáveis. Em seguida, fui desenhando esse ambiente de conflito e guerra, ao mesmo tempo que lidava com as ideias que orientam esse mundo, numa tentativa de derrotar aquelas que nos limitam e de encontrar ideias que sirvam como armas nessa guerra.
O refrão, sem dizer muito, consegue demonstrar a tensão do mundo atual. “Um dia isso vai explodir” é um verso que pode ser interpretado como se referindo a uma revolução ou ao fim da humanidade, e justamente busca insinuar a importância desse momento. A sociedade não vai ser capaz de continuar indefinidamente do jeito que está. Na sua segunda estrofe, novamente é colocada a contradição entre esse personagem revolucionário, que quer ver o fim do sistema, mas que tem a sociedade de consumo tão entranhada em si que faz com que se despreze e se questione de sua capacidade.
E quanto ao clipe?
É engraçado que, na verdade, quando gravamos esse clipe, logo após o lançamento do Dopamina, em 2018, ele ia ser um lyric video bem simples. Em um dia, sem muito planejamento, filmamos alguns tales de mim cantando num fundo preto no Front, prédio onde ficava nossa produtora de audiovisual na época, Mosca Produções.
Depois disso, a gente ia só editar um lyric mas, no final de 2018 acabei entrando em uma depressão que durou um tempo, o Front teve que fechar, e fiquei um tempo sem levar o projeto pra frente. Em Abril de 2019 que minha amiga Bruna Buccini falou que queria fazer o lyric e teve a ideia de adicionar bem mais coisas também, imagens de arquivo, filmadas por ela, e uns efeitos no after effects.
Daí, o clipe começou a tomar outra direção conforme ela ia acrescentando mais e mais efeitos, até que abandonamos totalmente a ideia de ter a letra da música na tela. O que acabou resultando foi talvez o meu trabalho audiovisual que mais gosto pessoalmente. Estou bem empolgado pra lançar esse clipe finalmente, num momento em que estou voltando a lançar várias novas músicas nas quais estive trabalhando no último ano.
O videoclipe Meu Tempo chega dia 16 no canal do VNDROID.
Fotografia por Pérola Quesada / Styling por Arad e Dau
Capa “Dopamina” por Bruna Buccini