{"id":3273,"date":"2022-02-07T17:09:57","date_gmt":"2022-02-07T17:09:57","guid":{"rendered":"https:\/\/straditerra.com.br\/?p=3273"},"modified":"2022-02-07T19:12:36","modified_gmt":"2022-02-07T19:12:36","slug":"radio-lele-rabay-cria-disco-coletivo-com-pacientes-de-hospitais-psiquiatricos","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/strads.com.br\/2022\/02\/07\/radio-lele-rabay-cria-disco-coletivo-com-pacientes-de-hospitais-psiquiatricos\/","title":{"rendered":"R\u00e1dio Lel\u00e9: Rabay cria disco coletivo com pacientes de hospitais psiqui\u00e1tricos"},"content":{"rendered":"\n

Por Gustavo Silva<\/em><\/strong><\/p>\n\n\n\n

Reverberando vozes manicomializadas, o \u00e1lbum \u00e9 um documento art\u00edstico da realidade manicomial ainda presente<\/em><\/p>\n\n\n\n

\u201cR\u00e1dio Lel\u00e9\u201d \u00e9 o nome do disco experimental proposto pelo artista Rabay e executado juntamente com pacientes de hospitais psiqui\u00e1tricos p\u00fablicos. Lan\u00e7ado no dia 07 de fevereiro, a iniciativa coletiva foi criada durante a\u00e7\u00f5es de um projeto art\u00edstico que promoveu interven\u00e7\u00f5es nas institui\u00e7\u00f5es.<\/p>\n\n\n\n

Inspirado em Nise da Silveira, uma das principais refer\u00eancias da luta antimanicomial no Brasil, o projeto de Rabay nasce da sua pesquisa e atua\u00e7\u00e3o com o universo da sa\u00fade mental, buscando trazer protagonismo e bem-estar \u00e0s pessoas portadoras de transtornos mentais.<\/p>\n\n\n\n

\u201cAtualmente eu estou trabalhando esse tema no \u2018Mestrado em Artes, Urbanidades e Sustentabilidade\u2019, onde eu penso e experimento pr\u00e1ticas nesse sentido, usando a educomunica\u00e7\u00e3o. \u00c9 no sentido de fortalecer os discursos antimanicomiais e promover o bem viver dessas pessoas a partir da express\u00e3o art\u00edstica. Eu estou estudando isso no mestrado, mas eu j\u00e1 venho de uma atua\u00e7\u00e3o nesse sentido h\u00e1 cerca de seis anos em institui\u00e7\u00f5es psiqui\u00e1tricas p\u00fablicas.<\/em><\/strong><\/p>\n\n\n\n

Como Nise da Silveira demonstrou, \u00e9 uma ferramenta de promo\u00e7\u00e3o do bem-estar, mas n\u00e3o esse bem-estar neoliberal, alienado, s\u00f3 de se sentir bem, sem nenhuma vis\u00e3o pol\u00edtica. \u00c9 um bem-estar que est\u00e1 mais para o conceito do [Alberto] Acosta, que \u00e9 o bem viver. Ent\u00e3o voc\u00ea promove o bem-estar do paciente da sa\u00fade mental, mas ao mesmo tempo voc\u00ea promove esse protagonismo dele a partir da divulga\u00e7\u00e3o, do compartilhamento dessas cria\u00e7\u00f5es, estimulando essas narrativas.\u201d<\/em><\/strong>
<\/p>\n\n\n\n

\"\"
s\u00e9rie Dil\u00favios, 2019, Marlon de Paula<\/strong>
registros feitos durante a residencia art\u00edstica Museu Bispo do Ros\u00e1rio antiga Col\u00f4nia Juliano Moreira<\/figcaption><\/figure><\/div>\n\n\n\n

Gravado dentro dos hospitais, o disco documenta indiretamente uma realidade que muitos acreditam j\u00e1 estar superada. Distantes do centro urbano, localizados \u00e0s margens dos munic\u00edpios, os manic\u00f4mios favorecem o isolamento de seus pacientes, dificultando sua reinser\u00e7\u00e3o na sociedade. A R\u00e1dio Lel\u00e9 permite acessar partes da textura humana, criativa e subjetiva desses indiv\u00edduos t\u00e3o invisibilizados. Para Rabay, ouvir as cria\u00e7\u00f5es dessas pessoas \u00e9 reconhecer que elas existem e infelizmente continuam trancadas dentro dessas institui\u00e7\u00f5es.<\/p>\n\n\n\n

\u201cO motivo de eu ter ido pra esse universo foi porque eu suspeitava, atrav\u00e9s de obras como o trabalho de Stella do Patroc\u00ednio, Arthur Bispo do Ros\u00e1rio, dentre v\u00e1rios outros trabalhos envolvendo diversidade cultural e loucura, que essas pessoas s\u00e3o muito criativas. A quest\u00e3o da loucura \u00e9 uma leitura da sociedade racionalista com rela\u00e7\u00e3o ao indiv\u00edduo, no sentido das pessoas que n\u00e3o se enquadram no padr\u00e3o de \u201cnormal\u201d. O normal vem da palavra \u2018norma\u2019, que nos padroniza, nos enquadra, ent\u00e3o eu suspeitava que pessoas que rompem com isso seriam pessoas artisticamente livres, por isso fui at\u00e9 elas.<\/em><\/strong><\/p>\n\n\n\n

Eu j\u00e1 tinha um trabalho com a m\u00fasica, com improvisa\u00e7\u00e3o, sempre gostei muito dessa coisa fluida na arte, e isso se revelava tamb\u00e9m em jogos musicais que eu desenvolvia e praticava. Criei com um primo meu, na inf\u00e2ncia, uma s\u00e9rie de jogos a partir de improviso e repeti\u00e7\u00f5es, com percuss\u00e3o e outros instrumentos, inclusive com a palavra. At\u00e9 a quest\u00e3o das rimas, as batalhas de rima, eu gosto bastante. Ent\u00e3o eu quis experimentar isso com essas pessoas, a partir desse universo que eu j\u00e1 frequentava.\u201d<\/em><\/strong><\/p>\n\n\n\n

Nas pr\u00e1ticas, Rabay trabalhava com grupos de cerca de 20 pessoas, utilizando um pedal de loop. O artista gravava uma primeira camada sonora (vocal, etc.) de base e estimulava que cada um na roda criasse uma nova camada, percebendo ent\u00e3o a soma desses sons. Quando os indiv\u00edduos percebem sua contribui\u00e7\u00e3o dentro desse contexto coletivo, isso tem um efeito: eles sentem sua pot\u00eancia criativa de afetar o resultado est\u00e9tico daquela grava\u00e7\u00e3o e acabam se envolvendo no processo. Al\u00e9m disso, exercem um protagonismo como indiv\u00edduos criadores e isso tem um efeito positivo na auto-estima e fortalece as rela\u00e7\u00f5es do grupo atrav\u00e9s do jogo. A R\u00e1dio Lel\u00e9 \u00e9 isso: uma sele\u00e7\u00e3o de registros di\u00e1rios de cria\u00e7\u00f5es coletivas.<\/p>\n\n\n\n

\u201cEu acho que \u00e9 importante falar sobre esse aspecto ao vivo, coletivo: tava todo mundo se ouvindo ali. A partir do pedal de loop a gente ia gerando essas paisagens sonoras em tempo real, e percebendo esses resultados coletivamente, sobrepondo as camadas, estimulando o improviso, a cria\u00e7\u00e3o livre, questionando padr\u00f5es de normalidade.<\/em><\/strong><\/p>\n\n\n\n

Eu falava com eles assim: \u2018Se eu fa\u00e7o um barulho diferente na rua, no centro da cidade, o povo vai falar que eu sou doido, mas se eu fizer esse mesmo barulho em cima do palco, ou em um beat, ele vai ser aceito atrav\u00e9s da arte\u2019. Ent\u00e3o eles percebiam, a partir dos beats criados na hora, que esse som que inicialmente parecia estranho, ao entrar em um contexto art\u00edstico, em uma est\u00e9tica musical, era ressignificado. Partimos para o entendimento que atrav\u00e9s da arte a gente pode questionar esses padr\u00f5es.\u201d<\/em><\/strong><\/p>\n\n\n\n

Apesar de buscar fomentar o protagonismo dos pacientes, a R\u00e1dio Lel\u00e9 esbarra em limita\u00e7\u00f5es jur\u00eddicas que ilustram o contexto manicomial e, nesse sentido, acaba por denunci\u00e1-lo: o trabalho nasce do registro cotidiano das pr\u00e1ticas coletivas propostas pelo educador, por\u00e9m, por se encontrarem em situa\u00e7\u00e3o de interna\u00e7\u00e3o, a quest\u00e3o dos direitos de imagem dos autores \u00e9 intermediada e muitas vezes tutelada pela administra\u00e7\u00e3o dos hospitais, ficando subordinada a sua avalia\u00e7\u00e3o.<\/p>\n\n\n\n

\"\"
s\u00e9rie Dil\u00favios, 2019, Marlon de Paula<\/strong>
registros feitos durante a residencia art\u00edstica Museu Bispo do Ros\u00e1rio antiga Col\u00f4nia Juliano Moreira<\/figcaption><\/figure><\/div>\n\n\n\n

De acordo com Rabay, essas lideran\u00e7as t\u00eam uma percep\u00e7\u00e3o majoritariamente conservadora e higienista acerca das obras dos pacientes e n\u00e3o as interpretam como arte, apenas como evid\u00eancias de um adoecimento, que devem ser omitidas. Essa postura impossibilita a tramita\u00e7\u00e3o que facilitaria a divulga\u00e7\u00e3o dos v\u00e1rios autores e autoras envolvidos no trabalho.<\/p>\n\n\n\n

\u201cMesmo n\u00e3o concordando com o modelo das institui\u00e7\u00f5es, acredito que devemos pensar nas pessoas que ainda se encontram l\u00e1 dentro e buscar maneiras de intervir, sem deixar que o hospital se aproprie desse trabalho para legitimar sua exist\u00eancia. Seria algo como uma redu\u00e7\u00e3o de danos enquanto o espa\u00e7o n\u00e3o \u00e9 desativado. Essa postura \u00e9 um desafio, pois os hospitais psiqui\u00e1tricos buscam se maquiar, tentando divulgar uma suposta renova\u00e7\u00e3o a todo momento. R\u00e1dio Lel\u00e9 \u00e9 fruto de entender esses processos: nasce de registros das pr\u00e1ticas coletivas que desenvolvi, por\u00e9m de grava\u00e7\u00f5es e composi\u00e7\u00f5es cuja divulga\u00e7\u00e3o n\u00e3o foi diretamente autorizada pelos dirigentes dos hospitais, justamente por revelarem esse aspecto mais aut\u00f4nomo e livre dos indiv\u00edduos. <\/em><\/strong>Segundo o artista, quando um paciente cantava uma can\u00e7\u00e3o religiosa ou fazia algum relato positivo com rela\u00e7\u00e3o \u00e0 institui\u00e7\u00e3o, n\u00e3o havia problema algum na exposi\u00e7\u00e3o do material, por\u00e9m cria\u00e7\u00f5es mais fluidas e cr\u00edticas, ou at\u00e9 mesmo ritmos como o funk, eram desencorajados.<\/em><\/strong><\/p>\n\n\n\n

A quest\u00e3o que mais me impacta nisso tudo \u00e9 estar divulgando esse trabalho, falando sobre isso, e ter essa impossibilidade, essa dificuldade em estar lado a lado com os autores e autoras falando sobre as nossas cria\u00e7\u00f5es. Apesar disso, se trata de abrir uma janela e transmitir, reverberar essas vozes, que do contr\u00e1rio n\u00e3o seriam ouvidas.\u201d<\/em><\/strong><\/p>\n\n\n\n

Para Rabay, a R\u00e1dio Lel\u00e9, como processo, sendo um registro que nasce de uma pr\u00e1tica coletiva, \u00e9 uma experi\u00eancia positiva de comunica\u00e7\u00e3o e cria\u00e7\u00e3o. No entanto, a possibilidade deste trabalho possibilitar e promover mudan\u00e7as no contexto da psiquiatria, em uma quest\u00e3o hist\u00f3rica, \u00e9 algo subjetivo.<\/p>\n\n\n\n

\u201cAs discuss\u00f5es que podem nascer a partir desses discursos e cria\u00e7\u00f5es, s\u00e3o positivas no sentido da transforma\u00e7\u00e3o cultural acerca da percep\u00e7\u00e3o da loucura. A luta antimanicomial passa muito por isso. O [Franco] Basaglia fala que se a gente n\u00e3o mudar culturalmente a nossa percep\u00e7\u00e3o sobre a loucura, n\u00e3o adianta esmaecer os muros dos manic\u00f4mios.<\/em><\/strong><\/p>\n\n\n\n

\"\"
s\u00e9rie Dil\u00favios, 2019, Marlon de Paula<\/strong>
registros feitos durante a residencia art\u00edstica Museu Bispo do Ros\u00e1rio antiga Col\u00f4nia Juliano Moreira<\/figcaption><\/figure>\n\n\n\n

A luta antimanicomial passa por uma transforma\u00e7\u00e3o cultural da nossa percep\u00e7\u00e3o com rela\u00e7\u00e3o \u00e0s pessoas portadoras de transtornos mentais. Se esse disco contribui para uma mudan\u00e7a cultural nesse sentido, ele contribui com a luta antimanicomial, que passa por, al\u00e9m do fechamento das institui\u00e7\u00f5es, pela derrubada f\u00edsica desses muros, mas tamb\u00e9m em como a gente acolhe essas pessoas e em como a gente lida e dialoga com elas.\u201d<\/em><\/strong><\/p>\n\n\n\n


O disco e as imagens podem ser acessados atrav\u00e9s do YouTube e as faixas tamb\u00e9m se encontram dispon\u00edveis nas principais plataformas digitais de streaming. O trabalho conta com a mixagem e masteriza\u00e7\u00e3o de \u00e1udio feitas pelo produtor Dabliueme e imagens de Marlon de Paula, produzidas pelo artista visual durante resid\u00eancia art\u00edstica no Museu Arthur Bispo do Ros\u00e1rio, espa\u00e7o situado na antiga Col\u00f4nia Juliano Moreira, institui\u00e7\u00e3o psiqui\u00e1trica que chegou a \u201cabrigar\u201d cerca de 5.000 pessoas na d\u00e9cada de 60.<\/p>\n\n\n\n

\n