Por Gustavo Silva
Reverberando vozes manicomializadas, o álbum é um documento artístico da realidade manicomial ainda presente
“Rádio Lelé” é o nome do disco experimental proposto pelo artista Rabay e executado juntamente com pacientes de hospitais psiquiátricos públicos. Lançado no dia 07 de fevereiro, a iniciativa coletiva foi criada durante ações de um projeto artístico que promoveu intervenções nas instituições.
Inspirado em Nise da Silveira, uma das principais referências da luta antimanicomial no Brasil, o projeto de Rabay nasce da sua pesquisa e atuação com o universo da saúde mental, buscando trazer protagonismo e bem-estar às pessoas portadoras de transtornos mentais.
“Atualmente eu estou trabalhando esse tema no ‘Mestrado em Artes, Urbanidades e Sustentabilidade’, onde eu penso e experimento práticas nesse sentido, usando a educomunicação. É no sentido de fortalecer os discursos antimanicomiais e promover o bem viver dessas pessoas a partir da expressão artística. Eu estou estudando isso no mestrado, mas eu já venho de uma atuação nesse sentido há cerca de seis anos em instituições psiquiátricas públicas.
Como Nise da Silveira demonstrou, é uma ferramenta de promoção do bem-estar, mas não esse bem-estar neoliberal, alienado, só de se sentir bem, sem nenhuma visão política. É um bem-estar que está mais para o conceito do [Alberto] Acosta, que é o bem viver. Então você promove o bem-estar do paciente da saúde mental, mas ao mesmo tempo você promove esse protagonismo dele a partir da divulgação, do compartilhamento dessas criações, estimulando essas narrativas.”
Gravado dentro dos hospitais, o disco documenta indiretamente uma realidade que muitos acreditam já estar superada. Distantes do centro urbano, localizados às margens dos municípios, os manicômios favorecem o isolamento de seus pacientes, dificultando sua reinserção na sociedade. A Rádio Lelé permite acessar partes da textura humana, criativa e subjetiva desses indivíduos tão invisibilizados. Para Rabay, ouvir as criações dessas pessoas é reconhecer que elas existem e infelizmente continuam trancadas dentro dessas instituições.
“O motivo de eu ter ido pra esse universo foi porque eu suspeitava, através de obras como o trabalho de Stella do Patrocínio, Arthur Bispo do Rosário, dentre vários outros trabalhos envolvendo diversidade cultural e loucura, que essas pessoas são muito criativas. A questão da loucura é uma leitura da sociedade racionalista com relação ao indivíduo, no sentido das pessoas que não se enquadram no padrão de “normal”. O normal vem da palavra ‘norma’, que nos padroniza, nos enquadra, então eu suspeitava que pessoas que rompem com isso seriam pessoas artisticamente livres, por isso fui até elas.
Eu já tinha um trabalho com a música, com improvisação, sempre gostei muito dessa coisa fluida na arte, e isso se revelava também em jogos musicais que eu desenvolvia e praticava. Criei com um primo meu, na infância, uma série de jogos a partir de improviso e repetições, com percussão e outros instrumentos, inclusive com a palavra. Até a questão das rimas, as batalhas de rima, eu gosto bastante. Então eu quis experimentar isso com essas pessoas, a partir desse universo que eu já frequentava.”
Nas práticas, Rabay trabalhava com grupos de cerca de 20 pessoas, utilizando um pedal de loop. O artista gravava uma primeira camada sonora (vocal, etc.) de base e estimulava que cada um na roda criasse uma nova camada, percebendo então a soma desses sons. Quando os indivíduos percebem sua contribuição dentro desse contexto coletivo, isso tem um efeito: eles sentem sua potência criativa de afetar o resultado estético daquela gravação e acabam se envolvendo no processo. Além disso, exercem um protagonismo como indivíduos criadores e isso tem um efeito positivo na auto-estima e fortalece as relações do grupo através do jogo. A Rádio Lelé é isso: uma seleção de registros diários de criações coletivas.
“Eu acho que é importante falar sobre esse aspecto ao vivo, coletivo: tava todo mundo se ouvindo ali. A partir do pedal de loop a gente ia gerando essas paisagens sonoras em tempo real, e percebendo esses resultados coletivamente, sobrepondo as camadas, estimulando o improviso, a criação livre, questionando padrões de normalidade.
Eu falava com eles assim: ‘Se eu faço um barulho diferente na rua, no centro da cidade, o povo vai falar que eu sou doido, mas se eu fizer esse mesmo barulho em cima do palco, ou em um beat, ele vai ser aceito através da arte’. Então eles percebiam, a partir dos beats criados na hora, que esse som que inicialmente parecia estranho, ao entrar em um contexto artístico, em uma estética musical, era ressignificado. Partimos para o entendimento que através da arte a gente pode questionar esses padrões.”
Apesar de buscar fomentar o protagonismo dos pacientes, a Rádio Lelé esbarra em limitações jurídicas que ilustram o contexto manicomial e, nesse sentido, acaba por denunciá-lo: o trabalho nasce do registro cotidiano das práticas coletivas propostas pelo educador, porém, por se encontrarem em situação de internação, a questão dos direitos de imagem dos autores é intermediada e muitas vezes tutelada pela administração dos hospitais, ficando subordinada a sua avaliação.
De acordo com Rabay, essas lideranças têm uma percepção majoritariamente conservadora e higienista acerca das obras dos pacientes e não as interpretam como arte, apenas como evidências de um adoecimento, que devem ser omitidas. Essa postura impossibilita a tramitação que facilitaria a divulgação dos vários autores e autoras envolvidos no trabalho.
“Mesmo não concordando com o modelo das instituições, acredito que devemos pensar nas pessoas que ainda se encontram lá dentro e buscar maneiras de intervir, sem deixar que o hospital se aproprie desse trabalho para legitimar sua existência. Seria algo como uma redução de danos enquanto o espaço não é desativado. Essa postura é um desafio, pois os hospitais psiquiátricos buscam se maquiar, tentando divulgar uma suposta renovação a todo momento. Rádio Lelé é fruto de entender esses processos: nasce de registros das práticas coletivas que desenvolvi, porém de gravações e composições cuja divulgação não foi diretamente autorizada pelos dirigentes dos hospitais, justamente por revelarem esse aspecto mais autônomo e livre dos indivíduos. Segundo o artista, quando um paciente cantava uma canção religiosa ou fazia algum relato positivo com relação à instituição, não havia problema algum na exposição do material, porém criações mais fluidas e críticas, ou até mesmo ritmos como o funk, eram desencorajados.
A questão que mais me impacta nisso tudo é estar divulgando esse trabalho, falando sobre isso, e ter essa impossibilidade, essa dificuldade em estar lado a lado com os autores e autoras falando sobre as nossas criações. Apesar disso, se trata de abrir uma janela e transmitir, reverberar essas vozes, que do contrário não seriam ouvidas.”
Para Rabay, a Rádio Lelé, como processo, sendo um registro que nasce de uma prática coletiva, é uma experiência positiva de comunicação e criação. No entanto, a possibilidade deste trabalho possibilitar e promover mudanças no contexto da psiquiatria, em uma questão histórica, é algo subjetivo.
“As discussões que podem nascer a partir desses discursos e criações, são positivas no sentido da transformação cultural acerca da percepção da loucura. A luta antimanicomial passa muito por isso. O [Franco] Basaglia fala que se a gente não mudar culturalmente a nossa percepção sobre a loucura, não adianta esmaecer os muros dos manicômios.
A luta antimanicomial passa por uma transformação cultural da nossa percepção com relação às pessoas portadoras de transtornos mentais. Se esse disco contribui para uma mudança cultural nesse sentido, ele contribui com a luta antimanicomial, que passa por, além do fechamento das instituições, pela derrubada física desses muros, mas também em como a gente acolhe essas pessoas e em como a gente lida e dialoga com elas.”
O disco e as imagens podem ser acessados através do YouTube e as faixas também se encontram disponíveis nas principais plataformas digitais de streaming. O trabalho conta com a mixagem e masterização de áudio feitas pelo produtor Dabliueme e imagens de Marlon de Paula, produzidas pelo artista visual durante residência artística no Museu Arthur Bispo do Rosário, espaço situado na antiga Colônia Juliano Moreira, instituição psiquiátrica que chegou a “abrigar” cerca de 5.000 pessoas na década de 60.